Mulheres de ontem e de hoje (ou um salve à minha avó)
10 de janeiro. 10 horas e alguns minutos. Estava sentada no chão da sala lendo despretensiosamente uma revista até ver a luz do celular acender e perceber que era uma ligação. Não qualquer ligação, mas da família.
Uma certa frieza perpassou a espinha em segundos e antes de atender a ligação já sabia o que era: “não tem como falar de outro jeito, mas seu avô faleceu.”
Tudo o que vem a partir de então costuma ser comum no processo de luto: choro, pressão no feito, falta de disposição, prostração, ao mesmo tempo que as memórias vão fluindo como se fatos de 3 décadas atrás tivessem acontecido ontem.
Chega o dia seguinte. Dia de velar memória e corpo, mas também consolar quem fica.
A gente acredita que a morte deveria gerar maior simpatia, mas isso não é tão verdadeiro. Ao encontrar a família, já sei que a seguradora funerária não havia feito o pagamento do enterro porque “tinha acabado a luz”. A cabeça de advogada já pensa: “tudo bem, vamos ajuizar ação de indenização, pois o seguro está pago e era dever deles providenciar tudo. Falta de luz por alguns minutos não justifica o atraso de horas, potencializando o sofrimento da família”.
Mas os amigos de anos da família estavam lá e foi uma despedida leve, emocionante. Muitos abraços afetuosos, palavras de apoio, mãos dadas.
Saímos eu e meus primos para voltarmos para casa. Eu estava de carro e iria dar carona para eles, mas acabamos decidindo jantar juntos para elaborarmos a tristeza de forma solidária. Embora juridicamente primos, meu pai é irmão da mãe deles, nos sentimos verdadeiramente como irmãos, porque até a metade da adolescência crescemos na mesma casa. Nossa família nunca foi o padrão burguês liberal branco e funcionava mais como as famílias coletivas negras em que pais, mães, tios, tias, irmãos e irmãs, primos e primas, sobrinhos e sobrinhas compartilham espaços e os cuidados uns dos outros.
Conversamos sobre as histórias tristes e alegres por horas até que veio a pergunta: “e minha avó? Como ela fica agora?”
Minha/nossa avó é uma mulher de 79 anos que se casou aos 14 anos de idade. Pensando agora, parece totalmente absurdo imaginar que ela era uma criança uma jovem adolescente quando casou e logo ficou grávida da primeira filha. Antes do casamento, viu seu pai morrer por picada de cobra na pequena agricultura familiar em Minas Gerais, foi separada de sua irmã (que foi entregue para ser cuidada por outra família) e trabalhou como empregada doméstica “em casa de família”.
Tudo isso até os 14 anos…
Foram 66 anos de casamento, 3 filhas, 2 filhos, 5 netas, 2 netos, 1 bisneta e 1 bisneto. E um silêncio profundo sobre o que essa história foi para ela. Nunca ouvimos ela dizer se o casamento foi bom ou apenas necessário; nunca ouvimos ela falar sobre ter filhos; nunca ouvimos se ela gostaria de ter estudado além da 4ª série. Crescemos ouvindo que se quiséssemos “ser alguém” era melhor estudarmos. E para comprar uma bicicleta quando estivéssemos em dúvida sobre o que fazer na vida. Refletindo sobre esse silêncio, ele tem uma violência tão forte porque ele é a consequência de uma vida sem o direito a ter voz, sem o direito a ser pessoa.
É impossível não pensar como o ser mulher dessa minha avó é diferente em relação a minha vida. Estamos afastadas por 1 geração apenas, mas o grau de autonomia e liberdade com que hoje eu convivo me remete aos movimentos feministas e as lutas das feministas negras. Penso em Sueli Carneiro…
Essa reflexão comparativa sobre os nossos lugares como mulheres acaba conduzindo nosso debate para o lugar que essa avó vai passar a ocupar a partir de agora. Afinal, depois de 66 anos ela não terá mais um homem para cuidar nem para tensionar os aspectos emocionais e sentimentais da sua vida.
“- Como é ter uma vida para você mesma depois de 6 décadas vivendo em função de outras pessoas?”, me vem a cabeça essa pergunta.
Nem irei pretender tentar responder a essa pergunta porque me falta lugar de fala.
Se há algo de tranquilizador, é a sua condição de viúva de militar com direito a pensão. Com isso, não há a pressão familiar de reorganização financeira. Há a certeza de que o apoio financeiro existe.
Mas, vejam. Ela nunca teve salário. Nunca teve conta em banco e precisou resolver todas essas burocracias. Apesar de fazer comida para fora até hoje, é dinheiro pouco, contado. Mas como será a relação com o ganhar dinheiro suficiente para ter uma vida boa?
Ter que pagar as contas, o aluguel, comprar tudo da casa, organizar-se financeiramente, cuidar da sua saúde, fazer um inventário e correr atrás de documentos para receber um seguro de vida…
A visão que tenho como espectadora desses fatos é de solidão e dúvida. A imagem que me surge é de estar numa escuridão em que a luz, aqui uma simbologia para um caminhar autônomo na vida, será uma busca interna dessa liberdade. É como se não fosse suficiente procurar onde está a luz que vai guiar, ela terá que vir de dentro, ainda que o apoio de outras pessoas seja necessário.
Olhando do ponto de vista do Direito, a situação é um resumo da posição da mulher ao longo dos anos: inexistência. A vida dela sempre foi um apêndice a vida de seu marido. Por anos o Direito invisibilizou mulheres; hoje, luta-se diariamente para que essa invisibilidade diminua cada vez mais até o ponto que ela nunca mais exista.
Sem nem saber, minha avó me ensinou mais algumas coisas e me deu mais algumas ideias: existem outros espaços no Direito para falar sobre mulheres além de família e direitos humanos? Existe relação entre feminismo e consumo, feminismo e seguridade social, feminismo e direito das sucessões, feminismo e trabalho, feminismo e direitos da personalidade?
Obrigada, vó. Por tudo que você me ensina mesmo quando nem sabe disso.
Com amor, Elisa.