Racismo, violência e Direito
29/05/2020: Brasil chega a 28.834 mortos pela pandemia e o país alcança o 4º lugar mundial com mais mortes.
25/05/2020: em Minneapolis, cidade de Minnesota ao norte dos EUA, George Floyd foi morto após abordagem policial violenta por um policial branco. Dias antes, o ISP – Instituto de Segurança Pública no RJ divulgou dados de criminalidade de abril em que se constatou que houve aumento de 43% da morte por intervenção de agente do Estado em relação a abril de 2019. Isso quer dizer: mais policiais mataram 43% mais pessoas em abril de 2020 do que em abril de 2019. Em números, isso significa que saltamos de 123 para 177 pessoas apenas na comparação dos períodos. E isso durante uma pandemia em que a recomendação das autoridades sanitárias é de isolamento em que os crimes violentos letais, homicídios dolosos, roubos de carga, na rua, a veículo e latrocínio todos tiveram forte queda no mesmo mês de abril.
20/05/2020: João Pedro, negro, 14 anos, morto em São Gonçalo (RJ) quando brincava no quintal de casa e a polícia invadiu o local e atirou mais de 70 vezes.
Quem são as vítimas dessas violências estatais? Pessoas negras e pobres.
Em entrevista para Gênero e Número, Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, deixa bem claro que a pandemia não tem nada de democrática e que “os negros são um dos grupos preferidos dela”.
Mais grave é que não apenas pessoas negras são as maiores vítimas da ausência de política pública na saúde, como são também invisíveis nas estatísticas da pandemia. Foi só com a articulação de movimentos sociais que se ajuizou ação para obrigar ao Estado a inclusão de etnorraça nos dados de registros oficiais.
Na mesma direção temos a reportagem da Agência Pública analisando dados da cidade de SP: pessoas negras tem menor possibilidade a aderir ao isolamento porque precisam de renda, o IDHM dos bairros com maior quantidade de pessoas negras é menor, existe maior adensamento populacional e menor oferta de serviços públicos básicos.
Talvez alguém estranhe que eu defina as 2 situações como violência.
Mas é o que são. Violências não são apenas os atos físicos de imposição de dor e vão além. Violências significam a imposição de sofrimentos, sejam eles físicos, psíquicos, sociais, políticos e econômicos e pessoas negras estão sujeitas individualmente ou como grupo há séculos.
Nunca deixa de ser uma boa oportunidade lembrar que a colonização do país por Portugal teve como uma das suas bases sociais e econômicas o escravismo com um intenso tráfico de escravos africanos. E, embora a escravidão tenha sido extinta como regime em 1888, as práticas escravistas nunca foram adequadamente combatidas pelo Estado brasileiro nem foram utilizados instrumentos políticos e jurídicos para incluir a pessoa negra na sociedade.
O racismo e o direito, no Brasil
Se olharmos pelo viés do direito penal, percebemos isso: apenas 100 anos depois da abolição da escravatura, com a Constituição de 1988, racismo ganhou status de crime grave e em 1989 a Lei 7.716 definiu concretamente o crime de racismo. Mas, negros ainda são mais de 40% das vítimas de homicídio conforme o Atlas da Violência de 2019 do IPEA.
“Em resumo, constatamos em mais uma edição do Atlas da Violência a continuidade do processo de profunda desigualdade racial no país, ainda que reconheçamos que esse processo se manifesta de formas distintas, caracterizando cenários estaduais e regionais muito diversos sobre o mesmo fenômeno.” (Atlas da Violência)
Do ponto de vista dos campos jurídicos não penais, o cenário é também marcado pela extrema desigualdade contra as pessoas negras. Menor acesso à saúde, menos políticas públicas de saúde pensadas para patologias com maior incidência em pessoas negras, continuidade da criminalização do aborto, baixo investimento na rede socioassistencial, reforma trabalhista com aprofundamento da desigualdade de renda, falta de políticas públicas para mães solo, falta de políticas de manutenção de pessoas negras na rede de ensino oficial.
O direito realmente combate o racismo?
Independentemente de como se olha, uma conclusão é certa: o Direito tem um papel importante na preservação do racismo e isso acontece, dentre várias razões, porque existe uma correlação entre Direito e poder e, consequentemente, com quem exerce o poder, majoritariamente uma elite branca que é detentora de riqueza.
Portanto, a confiança no Direito como resposta ao racismo deve ser vista com cuidado, porque sem a maior participação de pessoas negras e antirracistas na formulação das leis e na sua aplicação, não avançaremos. A mudança depende do protagonismo negro em ocupar os espaços e orientar as diretrizes políticas de superação do racismo.
O que pode ser feito hoje
Pode ser difícil e um desalento pensar no caminho que ainda terá que ser feito para uma construção de uma igualdade real. Mas não há outra opção senão lutar, porque a alternativa é permanecermos vítimas dessa opressão.
Mais difícil é descobrir como se engajar nessa luta, porque são muitas as possibilidades. Pode ser a participação em coletivos sociais e políticos, dedicação ao cuidado e à assistência de pessoas negras, consumir materiais (livros/música/arte/revistas) de pessoas negras e dar esses itens de presente (especialmente para pessoas brancas), não substituir as narrativas negras pelas brancas, não diminuir o sofrimento das pessoas negras, falar sobre racismo e nossa cultura racista compartilhada, não permitir que falas e frases racistas circulem sem resposta e oposição.