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Aborto não é loucura

25 de junho de 2019

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Aborto não é loucura

Há poucos dias, um vereador da Câmara Legislativa de São Paulo apresentou o Projeto de Lei n. 352/2019 com a intenção de “criar medidas de apoio à mulher gestante e à preservação da vida na rede municipal de saúde”.

Mas, na verdade, o que esse projeto de lei quer é controlar o corpo da mulher através do controle da sua gravidez.

Quero deixar claro uma coisa: em uma análise jurídica bem simples, esse projeto de lei é inconstitucional e é absurdo que a atividade legislativa nesse país ainda se paute pela apresentação de temas polêmicos para justificar a ocupação de cargos eletivos ao invés de promover a melhoria de serviços públicos.

E esse projeto de lei é inconstitucional porque:

  1. Determina apresentação de alvará para abortamento (art. 2º), mas abortamento sequer é permitido nesse país, hoje, debate esse em andamento. Além disso,  a questão é matéria processual e de direito penal, que só poderia ser feito no Congresso Nacional. O mesmo problema de falta de competência aparece também no art. 3º, § 2º, art. 4º e art. 11;
  2. Prevê obrigações para a Procuradoria Geral do Município (art. 2º, § 1º), o que só pode ser pedido em projeto de lei iniciado pelo Prefeito;
  3. O art. 5º, que obriga a atendimento religioso, viola a liberdade de culto e crença, porque mesmo com a adoção de alguma religião, ninguém é obrigado a professá-la, ou seja, seguir ativamente essa crença;
  4. O art. 8º, sobre escusa de consciência, é matéria de regulamentação profissional, que também é da competência do Congresso, porque é preciso que todos os profissionais de saúde tenham as mesmas obrigações e não se pode fixar uma obrigação para a cidade de SP diferente do resto do país;

O art. 11 é o mais surpreendente, porque, primeiro, ele reconhece que deve haver educação sexual para crianças, porque, afinal, como se vai explicar como se forma um feto para explicar batimentos cardíacos? E isso vai contra uma proposta do próprio vereador, de 2017, contra a educação sexual para crianças… Ficou difícil de entender…

Esclarecidos os pontos jurídicos mais gerais, que eu não conseguiria deixar de comentar, gostaria de centralizar os debates em 2 momentos do projeto de lei, sendo o primeiro deles a obrigação de que a mulher que deseje fazer o aborto espere por 15 dias e se submeta a atendimento psicológico, psicossocial e informação.

Como expliquei antes, esse projeto de lei tem um ponto de partida errado, porque no Brasil, ao menos ainda, o aborto só é legalmente permitido em casos de estupro ou de risco para a mulher. Portanto, ainda que a mulher queira abortar, ela não poderá. E, nos casos de abortamento legal, ela já está sendo atendida por pessoas da área de saúde, ou seja, profissionais da medicina, enfermagem, psicologia, assistência social etc., que estarão ali para atendê-la em todas as demandas que ela apresentar e que favoreçam a sua saúde.

A propósito, o acompanhamento por um conjunto de profissionais já é determinado pelo Ministério da Saúde, assim como o dever de informar a mulher sobre os procedimentos, formas e consequências. Aliás, essa é uma exigência do Ministério da Saúde, do Código de Ética Médica, do Biodireito e do Direito Civil, que exigem o consentimento de qualquer paciente para procedimentos de saúde, e só pode existir concordância quando se entende o que será realizado e suas consequências.

A inspiração para o projeto de lei claramente veio de leis antiaborto nos Estados Unidos, sobre as quais ainda prevalece a decisão Roe vs Wade, que assegura o direito à privacidade no atendimento médico sobre o aborto e a possibilidade do aborto em si. Nenhuma das legislações antiaborto mais recentes nos Estados Unidos passou por validação perante a Suprema Corte, mas tem sido alvo de críticas severas das principais mídias e profissionais de saúde, bem como da indústria de Hollywood.

O segundo ponto para debate nesse projeto de lei é associar o desejo de abortar, legal ou ilegalmente, a uma doença.

Sobre isso, me vem a cabeça aulas e aulas sobre biodireito e bioética, onde estudamos, resumidamente, os limites e impactos da ciência sobre o corpo humano, e as lições de Foucalt nos livros “História da Sexualidade”, “Os anormais”,  “Vigiar e punir”, “Nascimento da biopolítica” e “Microfísica do poder” em que ele diz o óbvio: o controle sobre pessoas sempre foi feito pelo corpo. Primeiro pela religião; depois, quando os países se tornaram laicos, pelo Estado; agora, pela medicina. É a área médica hoje a utilizada para determinar quem pode ou não ter controle sobre seu corpo, e para retirar esse controle, basta dizer que existe uma doença.

O problema é que gravidez não é doença. E desejo de não prosseguir com a gravidez também não é doença. Para provar isso, sugiro a leitura da Classificação Internacional de Doenças, chamada CID 10, porque está na 10ª edição (a 11ª ed. foi aprovada há pouco tempo pela Organização Mundial de Saúde, mas só começa a valer em 2022).

Dou um doce para quem encontrar onde está escrito que aborto ou a vontade de realiza-lo é uma doença.

Acredito que nesse momento seja bem clara a intenção de controle mulheres usando para isso o controle de seus corpos.

O que é difícil de entender é, por quê? Por que homens apresentam projetos de lei para controlar corpos femininos? No que esses projetos de lei ajudam a melhorar a condição de vida dos homens? No que esses projetos de lei ajudam ou melhoram a condição de vida das mulheres?

Infelizmente, as razões íntimas que levam a essas defesas, eu acredito que nunca conseguirei expor nos meus trabalhos, mas eu sigo com a certeza que nos cabe, a cada um, fazer o que faz o outro ser melhor.

Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.