Colunas Mulheres e o Direito

Agosto lilás

4 de agosto de 2021

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Agosto lilás

No texto de retorno das postagens da Coluna, busco mostrar como a resistência de Teresa de Benguela, símbolo do dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, deve nos inspirar a analisar o momento atual sobre avanços jurídicos e em ações governamentais contra a violência contra a mulher

Tereza de Benguela: símbolo de 25 de julho

O mês de julho marcou o início do segundo semestre do ano e a celebração do Dia Nacional de Tereza (ou Teresa) de Benguela e da Mulher Negra, no dia 25 de julho, mesmo data em que se comemora o dia da Mulher Negra Latinoamericana e Caribenha.

Em agosto, estamos diante do “Agosto Lilás”, quando, em comemoração à aprovação da Lei Maria da Penha, se celebra o mês de conscientização sobre a violência contra a mulher.

Antes de falar sobre o Agosto Lilás, queria deixar algumas linhas sobre Tereza de Benguela.

Como todos os escravos e escravas, não se sabe ao certo quando Tereza nasceu nem onde, mas foi escravizada no Brasil até 1840 quando foge e passa a viver no quilombo do Quariterê, que, uma década depois, viria a liderar com a morte de seu marido José Piolho. Foi morta em 1770 por uma expedição portuguesa que tinha por objetivo destruir a resistência quilombola.

Para mim, Teresa de Benguela e Esperança Garcia são os principais nomes de resistência feminina, de luta contra opressão, de luta contra as violências: ambas escravas negras que de alguma forma buscaram resistir à imposição do mundo escravista e machista que lhes era imposto. Teresa se manifestou pela fuga e pela liderança de um quilombo; enquanto tantas referências históricas do passado brasileiro citam homens brancos, Teresa nos lembra que a construção do que hoje chamamos de Brasil não aconteceu sem luta e que parte do que hoje vivemos foi construída a partir dessas resistências. Esperança, ao escrever uma carta ao então chefe do governo do atual Piauí reclamando pelo direito a permanecer na sua terra e com seu marido livres de violências físicas.

A violência contra a mulher e contra a mulher negra em números

Em uma sociedade e em um Direito que é dominado por regras embranquecidas, essas duas mulheres ainda retratam o panorama atual da maioria das mulheres no Brasil: de acordo com dados do Anuário de Segurança Pública de 2021 divulgado pelo Fórum de Segurança Pública, dos 1.350 casos de feminicídios contra mulheres adultas, crianças ou adolescentes, 61,8% das vítimas eram negras e, no mesmo período houve aumento de 33,5% para 34,5% da proporção de feminicídios em relação aos homicídios de mulheres. Casos de lesão corporal seguida de morte em que mulheres negras foram vítimas também aumentaram de 60% em 2019 para 75,3% de acordo com o relatório.

Mas não apenas mulheres negras são vítimas de crimes, porque o relatório aponta que 79% das vítimas da letalidade policial são negras, que levou ao comentário de que “a estabilidade da desigualdade racial inerente à letalidade policial ao longo das últimas décadas retrata de modo bastante expressivo o déficit de direitos fundamentais a que se está sujeito a população negra no país”.

As resistências de Teresa e Esperança persistem, embora atualizadas. Manifestações públicas (mesmo durante a pandemia), greves, publicações em redes sociais e mídias, livros, revistas e tantos outros instrumentos são hoje utilizados para dar visibilidade às violências que pessoas negras, dentre elas, especialmente mulheres, são vítimas.

As resistências no Direito e o “abandono” do Governo

No campo do Direito, essas resistências são visíveis na Lei Maria da Penha, de 2006, e as leis 13.882 e 13.894, ambas de 2019, que incluíram a prioridade na matrícula de filhos(as) de mulheres que sofreram violência doméstica em instituições de ensino próximas aos seus domicílios e a possibilidade de opção pelo divórcio ou dissolução da união estável nos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher. Em 2021, foi aprovada a lei 14.149 que instituiu formulário nacional de avaliação de risco com o objetivo de identificar fatores de risco de violência no âmbito das relações familiares e a lei 14.164 que incluiu a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher nas instituições de ensino públicas e privadas a ser realizada no mês de março.

Esses esforços, contudo, não tem sido repetidos nos programas orçamentários federais. No portal da Transparência do Governo Federal não foi localizado empenho nem pagamento de ações de enfrentamento a violência contra as mulheres entre janeiro e junho de 2021 (ação orçamentária 218B); em 2020 também não houve empenho, mas ocorreu o pagamento de dívidas referentes a anos anteriores (restos a pagar); e, em 2019, apesar das muitas reservas de contingência (que significam cortes no orçamento) para o serviço 180, houve a transferência de recursos via emendas parlamentares individuais para alguns programas de enfrentamento à violência contra a mulher, como, por exemplo, a manutenção da Casa da Mulher Brasileira.

Os “sinais trocados” entre a lei e as políticas públicas podem ser entendidos de duas formas: primeiro, uma aposta na judicialização, em especial pela via da criminalização, que, como vimos acima, afeta mais as pessoas negras, que apresentam maiores taxas de encarceramento. Em segundo lugar, também percebemos uma tentativa retorno à privatização dos conflitos de família com a retirada do Estado, via governo federal, das políticas de assistência à mulher. Esse segundo movimento é particularmente perigoso porque em pouco tempo pode significar uma nova onda de invisibilização das violências contra as mulheres, pois elas ficariam restritas ao âmbito privado e tenderiam a aumentar a violência, fato que, já tem acontecido como nos informa o Anuário do Fórum de Segurança Pública.

Para confirmar a saída do governo federal das políticas de enfrentamento à violência contra mulher, vale a pena conferir uma publicação do STF de 2019 sobre “Proteção da mulher: jurisprudência do STF e bibliografia temática” em que se pode perceber que certos avanços na guarda dos direitos femininos foram alcançadas por influência de processos constitucionais em razão da omissão do administrador público federal.

Antes de finalizar, esclareço que a responsabilidade pela proteção das mulheres não é exclusiva do Governo federal, mas, sim, compartilhada entre Estados e Municípios e pelos respectivos órgãos que compõem cada uma dessas esferas. Mas a baixa preocupação do setor federal serve como indicativo da realidade em Estados e Municípios e nesse sentido, merece profunda atenção.

Se conseguimos promover tantas mudanças nas últimas décadas, precisamos agora seguir na resistência para avançar, mas também ter a percepção de qual será o tamanho dessa luta.

Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.