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Desigualdade de gênero no serviço público

28 de outubro de 2020

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Desigualdade de gênero no serviço público

Existe igualdade de gênero no serviço público? Pode ser chocante, mas a resposta é negativa.

Nos habituamos a ter dados sobre mercado de trabalho e as diferenças entre homens e mulheres na iniciativa privada: em 2019, segundo o IBGE, os homens receberam cerca de 28,7% mais de salário do que mulheres e os homens também fizeram parte da população ocupada (56,8% de homens efetivamente trabalhando), apesar de as mulheres em idade de trabalho serem a maioria (52,4% de mulheres). Esses dados também mostram a diferença entre homens brancos, homens negros, mulheres brancas e mulheres negras, sendo essas últimas as mais marginalizadas em relação ao trabalho.

Quando tentamos usar esses critérios no serviço público temos alguns problemas, como, por exemplo, o art. 37 da Constituição exige que os cargos e empregos públicos sejam ocupados por quem for aprovado em concurso público e, também, que os salários dos servidores públicos está previsto em lei, e, portanto, não irá variar de acordo com o sexo da pessoa. Até mesmo promoções costumam ter critérios estabelecidos em lei, o que dificulta demais tratamento desigual.

Por quê, então, é possível afirmar que existe tratamento desigual entre homens e mulheres no serviço público?

Um dos critérios que podemos usar para essa conclusão é a quantidade de mulheres que ocupam posições de chefia.

Posições de chefia ou liderança são usualmente chamadas de “funções gratificadas”, gratificações ou DAS. O nome varia a depender esfera (Municipal, Estadual ou Federal), mas querem dizer que são trabalhos que exigem maior especialização ou que coordenam setores/equipes/serviços específicos.

Em publicação de 2015, a ENAP – Fundação Escola Nacional de Administração Pública divulgou que no serviço público federal (União) as mulheres eram 46% do total de servidores, mas apenas 43% das posições de chefia (não errei, 43% do total de cargos de chefia) eram ocupados por mulheres. E, se fossem considerados os cargos mais altos, chamados de DAS4, DAS5 e DAS6, apenas 33% dessas funções eram ocupadas por mulheres. Mais: “as mulheres negras e pardas ocupam respectivamente 1,2% e 5,4% dos cargos de direção”, diz o relatório da pesquisa.

Além de esses dados mostrarem a dinâmica social, de que mulheres não são aceitas em lideranças e posições de destaque, a pesquisa acaba revelando que mulheres têm salário menor no serviço público, pois as DAS significam maior renda: quanto maior a DAS, maior o salário e, se maior o percentual de homens em DAS mais altas, maior a renda masculina comparada à feminina.

O Atlas do Estado Brasileiro de 2019, divulgado pelo IPEA em dezembro/2019, aponta no mesmo sentido: a participação das mulheres no serviço público municipal, estadual e federal saltou de metade para 59,3% em 2017. Apesar do aumento do total de servidoras, a diferença salarial entre homens e mulheres aumentou: era de 17,1% em 1986 e subiu para 24,2% de remuneração média a menos em desfavor das mulheres

De acordo com o IPEA, a diferença salarial decorre do fato de as ocupações e carreiras de menor remuneração serem predominantemente femininas, além de os cargos da média e alta administração serem ocupados por menos mulheres.

Outros lugares que mostram a desigualdade

Apesar de eu ter escrito no início desse texto que o acesso à cargos públicos são igualitários, essa regra tem as suas exceções. As mais visíveis e (acredito) conhecidas são as de acesso às carreiras militares.

Matéria do Correio Braziliense apontava que em 2016 apenas 17% dos militares da Aeronáutica e 9% dos policiais militares do DF eram mulheres. Não foram encontrados dados das outras Forças Militares, salvo que apenas 2, sim, DUAS mulheres alcançaram até março de 2020 os postos mais altos das carreiras militares: Dalva Maria Carvalho Mendes, promovida a contra-almirante da Marinha, em 2012, por Dilma Roussef e Luciana Mascarenhas, promovida ao mesmo posto em 2018. E só elas 2 diante de um total de 400 oficiais, o que dá 0,5% do total de oficiais.

As forças militares em geral possuem bastantes obstáculos à presença de mulheres, dos quais destaco as exigências físicas para ter acesso ao meio militar, como acontecem quando se exige altura mínima, ou se proíbe a remarcação de prova física em caso de gravidez, testes de esforços físicos que desconsideram características do corpo feminino ou a obrigatoriedade de apresentação de laudo sobre o “estado das mamas e genitais”.

Uma palavra final

Ao final de cada texto escrito para a coluna sempre me vem à cabeça uma pergunta final, que eu descreveria assim: “entendi, é desigual e discriminatório. Mas o que fazer?”

Esse é particularmente um tema que me incomoda de forma especial, porque eu sou servidora pública e mesmo estando numa instituição que é composta numericamente por mais mulheres, ainda sinto que somos desestimuladas a exercer autoridade e nossas opiniões têm menor importância em decisões políticas.

Por isso, a minha resposta por ora seria: falar sobre isso, escrever sobre o tema e questionar essas desigualdades. Às vezes penso se coletivos seriam importantes, mas prefiro deixar as respostas em aberto e ir pensando sobre elas, esperando que vocês possam colaborar e compartilhar experiências e ideias.

Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.