Esta coluna nasce como nós, na vulnerabilidade
Era domingo de março e, depois de dias de chuva, o céu estava azul no Rio de Janeiro. Eu estava seguindo minha tradição pessoal desde criança: sentada no chão, tomando café e lendo jornal. Terminada a leitura, decido olhar as mensagens que propositalmente eu deixei de lado desde a sexta-feira anterior.
— Oi Elisa, você não gostaria de escrever para o Olhares Podcast?
— Sim, mas escrever sobre o quê?
— Alguma coisa que te motive a se expressar.
Para falar a verdade, estou resumindo dois dias de conversa. Mas essa ideia de escrever me cativou. E esse diálogo resume de forma significativa o que me impactou.
Passei alguns dias tentando me assegurar se havia algo sobre o qual eu poderia, precisasse ou quisesse me expressar. E esses dias representaram uma revisitação do passado e de escolhas: eu já tinha uns 15 anos quando decidi ser diplomata. Em 1999 não havia curso de relações internacionais em universidade pública no Rio de Janeiro. Li o edital do Instituto Rio Branco e entre economia e direito, achei que gostaria mais de direito. Passados 4 anos de graduação e alguns meses de estágio, a ideia de ser diplomata foi abandonada, afinal, eu me apaixonara pelo Direito.
Em janeiro contabilizei que fez 19 anos desde o dia em que entrei pela primeira vez no histórico prédio da Faculdade Nacional de Direito, no Centro do Rio de Janeiro, ao lado da Central do Brasil, do Arquivo Nacional e em frente ao Campo de Santana. E eu continuo apaixonada pelo Direito.
Foi importante revisitar a minha trajetória para buscar compreender os afetos que me movem e que, consequentemente, impactam sobre a minha vida e que trariam sentido em escrever publicamente. E foi nessa reconstrução que a consciência de ser defensora pública, mulher, feminista, professora e negra, me fez perceber que encontrei no estudo de vulnerabilidades no direito de família e no direito da infância uma forma de canalizar as opressões que são parte da minha história, mas que se fazem presentes diariamente na vida de mulheres, crianças e adolescentes, especialmente, as negras, pobres e marginalizadas.
O que é vulnerabilidade?
Não é fácil descrever o que é vulnerabilidade, pois de alguma forma toda pessoa está sujeita à dor, ao sofrimento, a ser lesionado e a estar fragilizado. Essa noção, contudo, não é importante para o direito, porque confunde a natureza humana com a condição de vulnerável.
Uma boa definição sobre vulnerabilidade está na seção 2 das “100 Regras de Brasília”, considerando-se nessa condição “aquelas pessoas que, por razão da sua idade, gênero, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico”, e cuja determinação “dependerá das suas características específicas, ou, inclusive, do seu nível de desenvolvimento social e econômico”.
Esse conceito tem 2 grandes importâncias: primeiro, definir para o Direito o que é vulnerabilidade. E, segundo, determinar que a interpretação e a aplicação da lei considere aspectos individuais e estruturais que identifiquem perfeitamente as pessoas e suas relações.
A lei é igual para todos, mas sua aplicação nem sempre
Principalmente, um estudo jurídico orientado a partir de perspectivas de gênero, raça, classe e idade tem por objetivo afastar a ideia de que a lei deve ser aplicada de forma igual a todas as pessoas. Ao contrário, impõe-se que a interpretação e aplicação da lei levem em consideração circunstâncias pessoais e conjecturais para que possa existir apoio à superação das vulnerabilidades e se busque alcançar uma proteção adequada à pessoa.
A guarda, instituto do direito de família, é um bom exemplo de como a aplicação da lei de forma acrítica (e supostamente neutra) pode levar a distorções: de acordo com a Constituição da República e o Código Civil, o poder familiar, do qual a guarda é um dos elementos, é atribuído ao pai e à mãe ou aos pais ou às mães em igualdade, de modo que todos e todas têm o dever de exercer os cuidados materiais e morais em relação aos filhos e filhas. Ainda assim, segundo dados do IBGE de 2017, cerca de 120.000 guardas foram atribuídas a mulheres de um total de cerca de 160.000 processos julgados em 1ª instância.
Temos um judiciário predominantemente masculino
A quantidade de decisões judiciais que atribuem à mulher a guarda de filhas e filhos é um reflexo do pensamento social de que o cuidado na família é exercido pela mulher. E, sem dúvida, contribui na reafirmação jurídica dessa ideia coletiva o fato de que 65% dos membros da magistratura sejam homens, conforme relatório sociodemográfico do Conselho Nacional de Justiça.
Uma das medidas para a superação dessa realidade no meio jurídico é a adoção de políticas de acesso e presença de mulheres no sistema de justiça (Tribunais de Justiça, Ministério Público, Defensoria Pública, Procuradorias e Advocacia), especialmente na gestão de políticas institucionais, de modo a promover um debate sobre papeis sociais e funções parentais.
Crianças não são propriedades
A guarda é exemplo também da localização da criança na família, chamando a atenção que ela não é objeto no direito e, portanto, não é coisa que pertença a um ou outro genitor ou genitora. A criança é pessoa, a quem o sistema jurídico nacional e internacional atribui proteção especial para assegurar o melhor desenvolvimento de suas potencialidades até a fase adulta. Sendo assim, os direitos e interesses da criança compõem as discussões sobre guarda em paralelo aos deveres e direitos parentais.
Essa abordagem tem permitido a ampliação dos debates sobre direito civil, em especial família e infância, para além dos tradicionais casamento, união estável, regime de bens e quem fica com a criança no divórcio, em direção à pessoa concretamente inserida na sociedade e a complexidade de relações que ela trava. E eu acredito que esse novo caminho ainda está apenas no início.