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Maternidade negra

17 de junho de 2020

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Maternidade negra

O olhar crítico de uma sociedade moldada por um padrão branco-burguês exige ainda mais de mães negras que não se enquadram. Mas elas deveriam?

Meus finais de semana costumam ser mais dedicados, sempre que possível, a reduzir o volume de trabalho. Uma forma de resistência a essa constante necessidade de ser produtiva. Mas, eu precisava organizar meus arquivos porque não conseguia mais encontrar o que precisava e, durante a organização, me chamou a atenção um texto com o título “Burn this bitch down!: Mike Brown, Emmett Till and the gendered politics of black parenthood” (tradução: “Queimem essa vadia!: Mark Brown, Emmet Till e a política de gêneros da parentalidade negra”) escrito por Teri McMurtry-Chubb.

O título impactante me fez parar a organização que estava fazendo para ler o artigo. Sim, bons títulos têm essa função.

Teri McMurtry-Chubb é uma professora e doutora negra da Universidade Mercer no estado da Geórgia. A frase “queimem essa vadia!” que ela usa no título foi a frase que Louis Head, padrasto de Mike Brown, morto por um policial de Fergunson em 2014, falou ao ouvir a notícia de que os responsáveis pela morte de seu enteado sequer se tornariam réus em um tribunal do júri. A frase, assim, não foi dita para incitar violência contra a mulher, mas sim como profunda frustração com a justiça.

A partir da morte de Mike Brown e de Emmett Till, essa, ocorrida em 1974, Teri McMurtry-Chubb faz algumas observações importantes sobre a parentalidade negra, em especial alguns mitos sobre a paternidade, dos quais destaco um deles: as pessoas negras eram altamente sexualizadas e corrompidas, porque não conseguiam manter uma estrutura familiar típica da família branca-burguesa em que existem pai, mãe e filhos, sendo o pai com a função de dar o sustento da família e a mãe cuidar da casa.

A família negra não segue o modelo branco-burguês

Teri argumenta que tentar explicar as famílias negras a partir de modelos brancos-burgueses é um problema, e de fato é, porque isso significa esquecer que:

  1. O escravidão por si e o tráfico Atlântico destruíam as formas familiares existentes entre os povos negros;
  2. A escravidão significava que o negro era propriedade do senhor de escravos e que, assim, poderia ser vendido ou separado das pessoas com que se vinculasse afetivamente;
  3. O fim da escravidão não foi acompanhado de políticas de inclusão, de modo que, o homem negro ficou sem condições materiais de cumprir o papel típico do pai de família branco.

Do ponto de vista da mulher negra, isso significa contestar que ela era abandonada, quando, na verdade, era muito mais vítima das consequências da escravidão como forma de estrutura social, que dificultava a existência das tradições culturais e familiares próprias, obrigava à adoção do padrão branco-burguês de família e, assim, tornava muito mais presente as chamada famílias matrilineares.

No Brasil,  Rute Rodrigues dos Reis, doutora em Ciências Sociais, faz uma análise bem parecida e destaca que havia vida organizada nas senzalas e que essa organização familiar era parte da estratégia de sobrevivência dentro do cativeiro.

Mas no que esse passado escravista impacta na parentalidade negra, e mais especificamente na maternidade negra?

O primeiro impacto é a persistência de obstáculos para que mulheres negras exerçam a maternidade de seus próprios filhos. Um exemplo visual disso é o quadro “Mãe Negra” (1912) de Lucílio de Albuquerque, em que uma mulher negra, com olhos desesperançados, amamenta uma criança branca enquanto deixa seu filho ao lado. Um segundo exemplo, numérico, é a alta concentração de mulheres negras como trabalhadoras domésticas e com empregos informais. A necessidade de ter salário/alguma renda para garantir o básico material para as suas famílias faz com que essas mulheres tenham que se dedicar mais ao cuidado diário dos outros do que consigo e de seus filhos.

Ainda assim, isso não significa que serão avaliadas como mãe de acordo com essa situação na qual são forçadas a viver. O segundo impacto é que essas mesmas mulheres serão julgadas como boas ou más mães de acordo com parâmetros brancos. Elas são questionadas por:

  1. Permitir o cuidado coletivo de seus filhos, em redes coletivas de afeto compostas por outros parentes ou por outras redes de apoio;
  2. Por não acompanharem a evolução escolar;
  3. Por não ter tempo livre suficiente para conversas pessoais.

A maior dificuldade está na falta de segurança gerada pelo racismo

Mas talvez o traço mais cruel e visível das dificuldades da maternidade negra seja a responsabilidade de garantir a segurança dos filhos. Cabe às mulheres negras orientar seus filhos sobre como se comportarem na sociedade para reduzir os riscos de serem vítimas de violência racial, tal como numa cena da série americana Grey’s Anatomy que pode ser vista, legendada em português, nesse link.

Em relação especificamente às filhas, e usando Patricia Hill Collins, mulheres negras enfrentam um dilema: “por um lado, para garantir a sobrevivência física das filhas, as mães devem ensiná-las a se enquadrar na política sexual da condição da mulher negra”, mas às custas do sofrimento emocional de ambas (Pensamento feminista negro, p. 306).

Ainda assim não é suficiente?

Mas mesmo quando fazem todo o necessário, ainda assim correm o risco de serem consideradas mães incapazes de cuidar de seus filhos e ameaçadas, mulheres e crianças, de serem separados pelo acolhimento (abrigamento) das crianças. Não existem dados nacionais compilados com exatidão, mas no Estado do Rio de Janeiro, 79,37% das cerca de 1.500 crianças acolhidas até 31/12/2019 eram negras (pretas e pardas), o que bem demonstra o rigor sobre a parentalidade negra nesse país.

Nesse sentido, as manifestações antiracistas que têm se intensificado em 2020, durante a pandemia, podem servir de um ponto fixo para debater como as pessoas negras (e seus corpos) são ainda julgadas nesse país, e o quanto ainda precisamos falar coletivamente para de fato superarmos o passado escravista.

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Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.