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Mulheres ainda precisam receber pensão?

6 de agosto de 2019

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Mulheres ainda precisam receber pensão?

Mentiras e verdades sobre alimentos (parte 2)

Nesse segundo texto vamos falar um pouco mais sobre alimentos em relação a mulheres adultas. Se você perdeu o primeiro, clica aqui para ler; inclusive sugiro que faça isso porque nesse primeiro texto abordo questões mais gerais sobre alimentos e que se aplicam à temática que irei abordar nesse post.

Mas se o tempo de leitura está apertado, vamos a um resumão: alimentos são uma prestação que se destina à manutenção, sendo tanto devido como recebido por cônjuges, companheiros|as, descendentes, ascendentes e irmãos|ãs, e tendo como valor a possibilidade de quem paga e a necessidade de quem recebe.

Dentro de uma sociedade em que a mulher era totalmente excluída de espaços públicos, o término de um casamento significava a miséria, pois ela simplesmente não conseguiria se sustentar.

A solução era, assim, determinar que o ex-marido pagasse alimentos à ex-esposa e aos seus filhos, assegurando alguma dignidade nessa pós-relação.

Desde a década de 60, com o Estatuto da Mulher Casada, as mulheres têm participado mais da vida pública e do mercado de trabalho, num processo que ainda está longe de estar finalizado, porque persistem grandes desigualdades sociais entre homens e mulheres. Mas, ao menos em tese, a situação de dependência feminina para o sustento já não seria tão forte como no passado.

Essa ideia se baseia no princípio constitucional da igualdade, mas, como tenho destacado nos posts anteriores da coluna, essa interpretação é formal e irreal. A verdadeira igualdade deve considerar que mulheres são socialmente discriminadas e exercem majoritariamente trabalhos específicos. No âmbito da família, isso está refletido no papel de cuidado das pessoas que a compõem; fora da família, as mulheres ocupam trabalhos pior remunerados, sujeitas à penalização pela maternidade e com menores chances de ascensão profissional. As mulheres negras têm uma situação ainda mais agravada nesse cenário.

Assim, deve-se resistir ao argumento de que há igualdade entre homens e mulheres, e se considerar elementos concretos da vida para analisar determinada situação.

Isso significa dizer que em uma ação sobre alimentos entre um ex-casal é insuficiente alegar a independência feminina e seu acesso ao mercado de trabalho para impedir o debate sobre alimentos. Devem-se ser feitas perguntas sobre a relação afetiva que existiu, as pessoas envolvidas, suas idades, suas expectativas passadas e futuras, como era a organização familiar, nível educacional, índice de saúde psicofísica e probabilidade de retorno ao mercado de trabalho, formal e informal, e etc. A decisão se os alimentos são necessários, em que valor por quanto tempo serão pagos dependem da interação do conjunto de respostas a essas perguntas.

Curiosamente, os tribunais superiores, especialmente do Superior Tribunal de Justiça, têm dado ênfase à pretensa igualdade formal, estabelecendo como regra que “a prestação de alimentos entre cônjuges tem caráter excepcional, devendo ser fixada, em regra, apenas pelo tempo necessário à reinserção no mercado de trabalho” (AgInt no AREsp 1442478).

A regra padrão dos tribunais é generalizante ao adotar como premissa que todas as mulheres têm iguais condições de exercício do trabalho e todas poderão aceder ao mercado de trabalho, sendo que essa generalização é o oposto a que determina o princípio da igualdade e a tese de vulnerabilidade.

Vale lembrar que no Brasil existem cerca de 13 milhões de desempregados ou 12,5% da população, taxa que tem apresentado tendência de aumento nos últimos anos.

Parece um pouco cínico acreditar que num cenário recessivo e de alta do desemprego será fácil a uma mulher que dedicou-se essencialmente aos cuidados da família, em maior ou inteira dependência econômica do marido, conquistar uma vaga de trabalho.

Mais do que isso, a generalização e abstração dos tribunais apaga o trabalho feminino de cuidado, considerando-o desimportante na dinâmica familiar.

Em resumo, embora seja possível afirmar que a tendência seja de haver menos casos de alimentos pagos a uma mulher, não se pode dizer que 1) eles nunca mais existirão; 2) eles serão sempre por prazo curto; 3) eles serão sempre por prazo certo, afinal, cada situação deve ser analisada de acordo com sua complexidade.

Antes de finalizar, deixo dois registros finais: também é possível alimentos na união estável, mas não existe no que chamados de concubinato. União estável é a união de 2 pessoas de modo público, contínuo e duradouro (alou, não tem prazo mínimo) e que se diferencia do casamento porque não teve o ato formal de celebração; concubinato existe quando as pessoas tem uma relação em que são proibidas por lei de casar. Ex.: pessoas casadas e que não estejam separadas de fato não podem ter união estável; 2 irmãos não podem se casar nem viver em união estável; um padrasto ou madrasta não podem casar nem viver em união estável com seu enteado ou enteada etc. Quando houver concubinato não há direito a alimentos porque não se aplicam as regras de direito de família.

Segundo e final registro: alimentos dependem da necessidade de quem vai receber e possibilidade de quem paga. Não se questiona mais teve alguém culpado, porque o direito de família não usa mais culpa, no sentido de quem deu causa ao término.

No próximo texto da coluna, falaremos de como se buscam os alimentos na justiça e porque o sistema agrava a condição da mulher.

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Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.