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O que é o casamento na vida das mulheres?

15 de maio de 2019

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O que é o casamento na vida das mulheres?

O título é meio pretensioso, eu sei, mas também necessário. Explico.

No último dia 26 de abril, o IBGE divulgou dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua sobre outras formas de ocupação em 2018, categorizadas em afazeres domésticos, cuidado de pessoas, trabalho voluntário e a produção para o próprio consumo.

Os resultados da pesquisa mostraram que a taxa de realização de trabalho doméstico é de 92,2% em mulheres e 78,2% em homens, e a taxa de realização de cuidado de pessoas é de 37% em mulheres e 26,1% em homens.

Na subdivisão das tarefas em trabalhos domésticos, percebe-se certo equilíbrio nas atividades de cuidar da organização do domicílio, cuidar dos animais domésticos e fazer compras ou pesquisar preços de bens para o domicílio, muito embora os dados da própria pesquisa me façam acreditar que se houvesse maior detalhamento nas categorias utilizadas elas mostrariam, por exemplo, que compras em supermercado é tarefa da mulher enquanto a compra de bens de consumo em geral (carro, televisão, rádio etc.) é uma tarefa com mais participação do homem.

Essa igualdade entre homens e mulheres não existe em outras atividades domésticas em que a necessidade de cuidado seja maior:

Ver esses dados me fez lembrar do dia que mostrei fotos do antes e depois do apartamento onde moro para colegas de trabalho e eles não acreditaram que eu tinha, sozinha, feito a pintura, montagem dos móveis e instalação de prateleiras suspensas nas paredes. E acho que ainda não acreditam, afinal, como uma mulher faria isso, certo?!

– Elisa, por que você nunca casou nem teve filhos?

– Porque eu ainda não tive uma relação em que meu parceiro tivesse a mesma visão do que seria estar junto, que eu acho que precisa ser de mais igualdade no dia-a-dia.

– Desista, isso não existe

(Conversa no trabalho, com um colega homem, no ano de 2018)

Todos esses dados reforçam o que nós, mulheres, vivemos todos os dias e que estudos feministas buscam dar visibilidade e alternativas para a superação da desigualdade.

Apesar dos meus estudos e da minha vivência, uma parte dessa pesquisa me violentou de uma forma que eu não esperava. O IBGE dividiu os trabalhos domésticos em 4 grupos: a) preparar ou servir alimentos e lavar a louça; b) limpeza e manutenção de roupas e sapatos; c) reparos e manutenção em domicílio; d) limpeza ou arrumação do domicílio e os comparou entre a) homens e mulheres solteiros|as ou b) sendo os responsáveis pela casa ou c) casados|as. Enquanto as mulheres realizam o mesmo nível de trabalho doméstico em qualquer condição de residência, os homens solteiros realizam até 40% a mais de trabalho doméstico quando estão solteiros em relação aos casados.

Dos homens que moram sozinhos, 92,7% cuidam da sua alimentação, mas, entre os casados, apenas 57,1%. E em relação às roupas e sapatos, dos 88,6% solteiros que fazem essas tarefas, apenas 49,5% dos casados a realizam.

Basicamente, ao casar, os homens deixam às mulheres as tarefas de casa que signifiquem cuidado de si e do outro.

Por que, então, casamos?

Várias(os) leitoras(es) talvez respondem a essa pergunta afirmando que casamos por amor. Mas, nem todo mundo casa por amor. Cada pessoa terá um motivo pessoal para se casar e nem sempre será amor. Aliás, a ideia romantizada de amor precisa ser repensada

Essas motivações pessoais não servem para uma resposta coletiva e que sirva como ponto de debate para as discussões da inserção da mulher na sociedade. Razões pessoais que levam ao casamento não podem ser submetidas a validação como certa ou errada, exatamente porque elas são profundamente pessoais.

Pensando a partir da minha condição de mulher, a pesquisa deixa bem evidente que o casamento é uma das formas de atribuir à mulher o dever social de cuidado, transferindo a ela o ônus de um trabalho não remunerado e invisível.

Para Maria Rita Kehl, o casamento para a mulher ainda está inspirado em valores históricos que são transmitidos de geração para geração e que servem para reafirmar que “o valor de uma mulher se confirma se um homem a ama e a toma como esposa”, e que o casamento equivale à felicidade na vida feminina. A necessidade constante de provar esse valor e a vida feliz, leva a aceitação de toda essa responsabilidade pelas mulheres.

Quero agora reforçar que não estou questionando as decisões pessoais de casar, morar junto, ou não casar, ou se separar. Novamente, são decisões pessoais.

Para o Direito, é proibido que o Estado diferencie pessoas por estarem ou não casadas (art. 226, § 7º, da Constituição).

Os motivos que levam as pessoas a se casarem, ou permanecerem casadas ou se separarem não são importantes para o Direito. Desde 2010, com a mudança no divórcio, sequer tratamos da ideia de culpa pela separação, porque não é papel do Estado determinar quem, na vida íntima, foi culpado|a pelo término de uma relação.

Mas existem processos que envolvem conflitos de um casamento que existe ou existiu e, aqui, é essencial que as pessoas que trabalhem com o Direito tenham a consciência da opinião coletiva sobre o que é ser homem ou mulher num casamento.

Processos em direito de família raramente são apenas a aplicação da lei. Neles existem uma complexa teia desejos, anseios, representações, afetos e expectativas que tornam a aplicação da lei (dizer o que o direito manda fazer, em linguagem simples) uma tarefa bem difícil.

Por isso defendo que o Direito tem potencial de ser uma das formas de resistência à discriminação de gênero, mas para isso deverá abandonar o seu mundo ideal e entender o que acontece na vida real.

* O texto tem como análise o casamento entre homem e mulher em razão da pesquisa do IBGE e para demonstrar o debate de gênero. A premissa utilizada no artigo não tem por objetivo negar o reconhecimento de casamentos entre pessoas de mesmo sexo, ou outras formas familiares além do casamento.

Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.