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Precisamos do feminismo negro no Direito das Famílias

23 de outubro de 2019

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Precisamos do feminismo negro no Direito das Famílias

Carla acordou as 5 horas da manhã para preparar o café e deixar a casa organizada. A audiência era só às 11 horas, mas ela sabia tudo que precisava ser feito até a hora de sair de casa. Levantou da cama, acendeu o fósforo e virou o botão do fogo até que a chama acendeu. Colocou um pouco de água fervente na garrafa térmica e só depois de jogar essa primeira parte fora, passou o café fumegante e tomou uns 2 dedos num copo de requeijão com um pouco de açúcar.

Não tinha fome. Foi direto tomar um banho e escolheu a melhor roupa que tinha no armário. Não era roupa de festa, um dos seus vestidos curtos, mas era uma roupa melhor do que usaria para aquela quinta-feira que não ia trabalhar.

Esperou até o último minuto e acordou o filho.

Colocou uma roupa nele ainda sonolento, o sapato, quase pedindo desculpas. Passou a mão na sua bolsa e saiu. Caminharam por uns 20 minutos até o ponto de ônibus e esperaram uns 40 minutos até que o ônibus parasse e pudessem entrar. Por sorte, como era perto do ponto final, conseguiram lugar pra sentar, colocou o filho no colo e em 5min, ele dormiu. Melhor assim.

Duas horas e meia depois, chegaram no Fórum. Ainda faltava 1h para a audiência, mas achou melhor chegar cedo mesmo porque o trânsito podia estar ruim e se isso acontecesse, se atrasaria.

Passou pelo raio-x do Fórum e teve que explicar cada item na bolsa que, eram apenas moedas e carrinhos de brinquedo pro filho. Foi procurando a sala que o advogado disse que ia ser a audiência e demorou para encontrar. A cada esquina que virava encontrava paredes cinzas compridas, a luz branca de LED, algumas apagadas, piscando, e estava sozinha….

Achou o lugar e sentou. Pegou os carrinhos de brinquedo, mas o filho simplesmente pegou o livro escolar e começou a ler. Em poucos minutos, dormiu e deixou assim.

A medida que a hora passava, percebeu o corredor mais cheio. Mais mulheres, algumas crianças, advogados cheios de pastas que entravam e saíam de uma sala para outra, vendedores de caneta, blocos de papel, balas, café, chocolate e até comida. Sorriu quando a ofereceram uma bala. Guardou ela no bolso. Isso ia alegrar o filho que ainda dormia.

Onze horas.

O coração começou a bater forte e a cada vez que a voz soava no corredor, seu coração ia na boca achando que tinha chegado sua vez.

Onze e dez.

Onze e vinte.

Onze e cinquenta e cinco.

Nada!

Achou que não tinha ouvido seu nome e entrou em pânico, mas nesse momento, viu seu advogado sair da sala e dizer: “fique tranquila, o juiz chegou agora. Vai demorar mais uns 30 minutos”.

O filho acordou às 12:30 e disse que estava com fome. Tirou o sanduíche da bolsa, ele comeu quase tudo. Carla deus umas 2 mordidas para não jogar fora, enquanto comprava um refrigerante pra ele e tirava a bala do bolso.

Trinta minutos.

O sistema de som anunciou: “Processo xxx. Autora: Carla. Réu: xxx. Sala de audiências 4”. Olhou pro advogado e ele disse, “vamos, chegou a hora”,

Entrou na sala e lhe disseram para sentar do lado direito. Puxou a cadeira e se sentou. Colocou o filho do lado e lhe disse “agora vamos brincar de silêncio”. Olhava para a mesa com uma concentração tão profunda, tão preocupada em ouvir as vozes, que não saberia dizer quantas pessoas estavam na sala. Mas sentia o cheiro do pai do seu filho e isso era suficiente para lhe deixar muito nervosa.

Em algum momento, ouviu:

– Sra. Carla! Sra. Carla!

Sem saber há quanto tempo a estavam chamando, disse: “sim, sou eu”.

– Bom dia. Com o que a Sra. Trabalha?

– Eu trabalho em casa de família. Cuido dos 03 filhos da minha patroa.

– E quanto você ganha?

– Um salário-mínimo.

– Você tem folga?

– Sim Sr. Um final de semana por mês, mas 2 outros dias durante a semana.

– E como você cuida do seu filho?

– De manhã e à noite, Dr.

– Você não acha que tinha que estar mais com ele não?

Antes que pudesse responder, já ouviu:

– E Sr. Quanto ganha? Faz o que da vida?

– Eu sou pedreiro. Ganho uns R$ 1.500,00 por mês.

– E quanto o Sr. pode pagar de pensão?

– Uns R$ 300,00.

– Então, Sra. Carla, a Sra. aceita esse valor de alimentos? Perguntou o juiz.

O advogado lhe deu uma cotovelada e disse: “aceita, o valor está bom”. E aí disse, sim, aceito.

Passaram uns minutos, ouvia um tec tec tec de digitação. Mas não tinha nenhuma ideia do que estava acontecendo. E tinha muita vergonha de perguntar…. Achou que só ela não sabia….

Enquanto isso acontecia, via uma ligação da sua patroa. Não atendeu. Recebeu um wahstapp: “Oi, você não pode vir mesmo hoje? O Francisco está doente e pedindo você e eu preciso ir pro trabalho!”. Lembrou que tinha avisado a patroa 5 vezes no último mês sobre a audiência e respondeu: “não, não posso. Ainda estou esperando a audiência”. Recebeu em resposta: “Ah, tudo bem. Mas vou descontar esse dia, tá!”. Suspirou!

Quando voltou de novo a sua atenção de novo para aquela sala, percebeu que o juiz conversava com a promotora. Conseguiu ouvir bem pouco as reclamações sobre a empregada que chegou atrasada dizendo que o trem estava atrasado e que a promotora ia descontar as horas; ouviu que a empregada não fazia a comida certa porque insistia em usar o óleo vegetal e não óleo de coco; e também ouviu reclamações do juiz e da promotora que teriam que cuidar dos filhos no final de semana, quando eles tinham um almoço de trabalho. Teve a impressão que ouviu: “Logo esse final de semana é a folga da empregada e ela disse que não pode ficar. Estou aqui pensando como vamos cuidar das crianças durante o almoço no clube”.

Inspira, respira. Ou, suspira!

Nesse momento, lhe deram um papel e mandaram assinar na linha pontilhada. Ela fez. Lhe deram um papel, ela guardou. E disseram, “acabou, podem ir”.

Olhou no relógio e tinham passado 15 minutos desde que ouviu seu nome no sistema de som.

O advogado lhe estendeu a mão e disse, “parabéns”. Qualquer problema, me ligue.

Olhou ao redor e viu as paredes cinzas, com as pessoas andando de um lado para o outro como se nada existisse ali entre aquelas paredes. Teve a sensação de que o tempo parou e, embora sentisse a sua mão segurando a do seu filho, se sentia como nas cenas da novela das nove em que uma câmera girava em torno de si e tudo estava borrado.

– MÃE! MÃEEEEEEEE!

Seu filho devia estar chamando a algum tempo, porque ele gritava e isso não era comum.

Foram andando para fora do Fórum para refazer todo o trajeto da manhã. Mas agora, ia durar umas 4h porque era mais tarde. Tinha menos ônibus e era mais cheio.

Enquanto o filho dormia no percurso de volta, ficou pensando em tudo o que aconteceu: ninguém lhe perguntou sobre sua vida, suas dificuldades, as necessidades do seu filho, como ele lida com a ausência do pai, quais são as necessidades que seu filho tem (como escola, saúde, transporte), como ele está psicologicamente depois que o pai parou de procurá-lo, o que seu filho gostaria, o que ela gostaria de ter de apoio do pai da criança, como ela tinha feito para estar ali, quanto ela tinha gastado, quanto ela tinha na carteira (R$ 11,40, aliás), quantos dias ela trabalhava por mês e por quantas horas…

Falamos sobre Feminismo Negro no episódio #017 do Olhares

Carla apenas pensava: eles não se importam comigo. Eu sou negra, mãe solo, moradora da periferia. Eles não se importam com a minha vida e com a do meu filho. Não lhes interessa quem eu sou, quem ele é, o que ele precisa. Aí lembrou que apenas ela respondeu à pergunta sobre “como ela cuida do filho”, mas ela sabe que o pai nunca vê, nunca cuida, mas essa pergunta não foi feita para ele… Sentiu que foi julgada como se fosse sua patroa, mas ela não era. Ela era a Carla, negra, pobre e mãe,  e isso não foi considerado.

Os olhos encheram de lágrimas diante de tudo isso e agarrou o filho como se lhe dissesse “vamos ficar bem”. Fechou os olhos e dormiu.

A caminhada do ponto de ônibus até em casa foi comprida. O 1km parecia uma maratona. Quando abriu a porta, viu a mesa posta, a comida feita e a roupa passada na cama. Sua mãe lhe abriu um sorriso e veio na sua direção. Não falou nada, mas lhe deu um abraço como se soubesse de tudo o que havia acontecido. E sua mãe lhe disse: “descansa, está tudo arrumado. Maria e Carolina estão vindo também e vamos jantar e ver TV juntas”. Chorou nesse abraço da mãe porque era tudo o que precisava saber, que não estaria sozinha.

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Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.