Colunas Mulheres e o Direito

Quando a Justiça é mulher apenas por símbolo

20 de maio de 2020

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Quando a Justiça é mulher apenas por símbolo

A pandemia de COVID-19 afeta enormemente a forma de trabalhar de todos e todas, mas o protagonismo das mulheres não é percebido ou é simplesmente ignorado.

Em 12 de maio de 2020, o Folha de São Paulo publicou nas versões impressa e eletrônica do jornal uma reportagem com o título “Em casa, procuradores, ministros e advogados conciliam processos, com filhos e lives”. A reportagem era acompanhada com fotos de 4 homens, sendo 1 deles sentado com os 2 filhos brincando enquanto trabalha no computador.

A matéria faz referência a mulheres em momentos bem pontuais: as esposas dos homens ouvidos, a Secretária de um deles e uma empregada que teve que ser dispensada em razão da pandemia. Um trecho é particularmente especial: “No trabalho você acaba conversando muito com colegas e, em casa, embora haja problemas domésticos, você ganha tempo”.

Na justiça não há mulheres?

São vários os erros da reportagem, mas vou apresentar dois que considero os principais. O primeiro foi ter esquecido da existência de mulheres no sistema de justiça, exercendo profissões de advogadas, servidoras públicas, advogadas, juízas, defensoras públicas, promotoras e procuradoras de justiça, procuradoras estaduais e municipais e ministras.

Não existem dados sobre a participação feminina em todas essas carreiras, mas, segundo o Conselho Superior do Ministério Público em relatório datado de 2018, dos apenas 39% eram mulheres. No Poder Judiciário, 38,8% dos cargos de Magistratura estavam preenchidos em 2018 por mulheres e se via alguma igualdade numérica na quantidade de servidoras públicas, com percentual de 56,6%. Apenas na advocacia existe prevalência das mulheres, com 64% dos profissionais cadastrados na OAB, segundo pesquisa divulgada em janeiro de 2020 pelo site Jota. Não há dados consolidados das Defensorias Públicas, porque uma nas poucas pesquisas sobre a instituição não foi  abordado esse tema.

É possível afirmar que a baixa representatividade das mulheres nas carreiras de justiça seja uma das causas da sua invisibilidade na forma como a atividade jurídica é retratada.

A participação feminina na justiça não se restringe a uma simbologia

A Justiça, como valor, é feminina e tem em Atenas ou Têmis seu símbolo, mas a prática jurídica é associada ao masculino porque, em tese, a capacidade de articular argumentos seria uma característica racional inerente aos homens.

Nesse sentido, a reportagem é a exemplificação do pensamento de gênero, em que a mulher tem valor afetivo exacerbado mas o trabalho é um fato do homem e que é ele quem o exerce.

O ônus da divisão sexual do trabalho

O segundo erro da reportagem: a desconsideração do trabalho doméstico e reprodutivo, cujo ônus é suportado pelas mulheres. É interessante observar como se preserva a ideia de que trabalho significa a prática de uma atividade/ carreira ou profissão que é remunerada pelo dinheiro. Outras atividades, mas em especial aquelas que dizem respeito ao cuidado e as tarefas de casa (e que fazem parte do cotidiano de qualquer pessoa), não estão naturalmente inseridas no conceito de trabalho, porque elas não são pagas com dinheiro. A questão é que essas “outras atividades” são exercidas historicamente por mulheres, pois, como bem conta Carole Pateman, o processo capitalista converteu os empregados da casa em trabalhadores fabris e de serviço, mas o trabalho na casa permaneceu domesticado junto com mulheres, provocando um sentimento de demérito na permanência dessa situação.

Ao enaltercer as dificuldades que homens estão enfrentando para lidar com os efeitos da pandemia, a reportagem nada mais faz do que reforçar os lugares do mundo a que homens e mulheres pertencem e que, sem contestação, irão permanecer, mantendo um modelo de discriminação e desigualdade contra a mulher. Tal modelo é, no mínimo, curioso diante da determinação da igualdade a que faz referência o art. 5º, caput, da Constituição da República e o art. 1º, também da Constituição, que elege a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos como objetivos da República brasileira.

A verdade é que, numa sociedade de fato igualitária, homens devem participar ativamente das atividades privadas e domésticas tanto quanto mulheres devem participar do exercício remunerado e visível das relações de trabalho. E não se trata aqui de dividir exatamente meio-a-meio as tarefas, mas normalizar as participações públicas e privadas a partir de níveis iguais de acesso e compartilhamento das responsabilidades.

Falamos sobre o assunto em nosso episódio #059 Divisão sexual do trabalho

A reportagem provocou uma onda de críticas. Eu mesma, Elisa, publiquei um post no twitter taxando a reportagem como machista e a União de Mulheres Advogadas e a Rede Feminina de Juristas organizou uma nota à Folha que levou a um pedido de retratação, uma crítica da Ombudsman do jornal e uma nova reportagem publicada em 18 de maio mostrando o cenário do trabalho feminino no sistema de justiça.

Se essa reportagem mostra a triste realidade da inserção feminina de modo igualitário na sociedade, a reação organizada à publicação também demonstra que não aceitaremos mais em silêncio esse lugar marginalizado e invisível.

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Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.