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Quem mandou nascer mulher?

17 de agosto de 2020

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Quem mandou nascer mulher?

Tomamos a liberdade de iniciar este artigo relembrando a pergunta feita em texto de Saffioti, escrito em 1996, e sua crítica a respeito dos Olhares que devemos construir quando falamos sobre a violência de gênero que é praticada contra crianças e adolescentes.

Um pouco de contexto

Acreditamos que, se você chegou a esse texto, está acompanhando a história de uma criança de 10 anos que foi estuprada e já estava grávida de cinco meses. Já faz dez dias que a situação é debatida na internet e levanta uma série de pontos que não podem ser deixados para trás.

Tudo começou quando a criança tentou fazer um aborto legal em um hospital (fontes divergem de qual) na cidade de Vitória-ES sob o argumento que o tempo de gestação para o aborto legal estaria fora do previsto em lei, quando a lei (supostamente) permitiria o aborto após até 20 semanas, quando na verdade não há qualquer previsão legal neste sentido, mas apenas uma menção em regulamentos médicos.

A criança teve seu direito negado pelo sistema de saúde, mas o Juiz da Vara da Infância e da Juventude de São Mateus (ES), cidade onde a menina grávida mora,  atendeu pedido do Ministério Público Estadual (MP-ES). Mesmo com autorização, a criança só conseguiu fazer o procedimento em outro estado.

O debate levanta diversos pontos que precisam ser discutidos a respeito da interpretação da lei, sobre a necessidade de se fazer uma análise sobre peculiaridades da infância e um recorte feminista nesta questão. No fim, fazemos a proposta para que sejam analisados outros pontos que a mídia não discutiu com tanta profundidade e damos alguns direcionamentos.

O que pesquisas e lei dizem sobre o assunto

O Brasil é recordista em crimes sexuais. No ano passado, o país registrou o maior número de casos desde 2007, e segue crescendo. A maior parte das vítimas é do sexo feminino (83%) e, destas, 54% são meninas de até 13 anos. Os agentes das violências são pessoas próximas, a maior parte homens e da família, como demonstra o Boletim Epidemiológico 27 do Ministério da Saúde. O Anuário de Segurança Pública (2019) informou que foram 66 mil vítimas de estupro no Brasil em 2018  

A subnotificação também é um problema, já que apenas 7,5% das vítimas procurou a polícia. O que nos faz compreender também a situação da avó, que não procurou a polícia para informar a respeito do crime praticado, apenas quando a questão se tornou incontornável, já que o medo é a justificativa que mais impede as mulheres de conseguir romper o silêncio para buscar auxílio

O aborto é permitido em lei. De acordo com o Código Penal (Artigo 128) e entendimentos dos tribunais (ADPF 54), ele é permitido em apenas três casos e é direito da mulher: se a gravidez é decorrente de estupro, se representar risco de vida à mulher e se for caso de anencefalia fetal, ou seja, não há desenvolvimento cerebral do feto. 

Vale ressaltar que qualquer hospital que ofereça serviços de ginecologia e obstetrícia deve ter equipamento adequado e equipe treinada para realizar abortos nas situações previstas em lei, não podendo recusar em fazê-los e nem exigir registro de ocorrência policial.

Estudos revelam que cerca de 55 milhões de abortos ocorreram entre 2010 e 2014, e 45% destes foram inseguros, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde). No Brasil, dados sobre aborto e suas complicações são incompletos, mas estima-se meio milhão por ano. Os dados são um pouco imprecisos, porque o aborto provocado é criminalizado no país, mas dados oficiais revelam estes números a partir da aproximação e cálculo de internações por abortos provocados e abortos legais.

O fato mais importante a se colocar aqui, que a negação ao aborto quando no caso deveria ser um direito garantido, de acordo com Juan Méndez, Relator Especial sobre Tortura e outros tratamentos ou Penas Cruéis (2016), coloca esta criança em um estado permanente de danos, com sofrimentos físicos e emocionais duradouros, que seriam equivalentes à tortura (proibida em lei – artigo 5º, III, CF/88), além de ser uma grave violação ao direito à saúde (artigo 6º, CF/88) e à integridade física e psicológica da vítima. 

Um pouco mais sobre peculiaridades da infância e vulnerabilidade

O caso envolve um elemento que pode parecer desimportante, mas que, ao contrário, exige uma atenção redobrada: é sobre uma criança de 10 anos que estamos falando.

Sobre esse ponto, é importante relembrar (ou talvez contar) que ela tem direito a ser protegida integralmente e ter o seu interesse colocado como prioridade. Por um lado, significa reconhecer que coletivamente, família, sociedade e Estado falhamos em assegurar que ela não fosse vítima da violência sexual, mas exige que qualquer decisão sobre a sua vida deva buscar reconstruir as melhores possibilidades de desenvolvimento e, nisso, a sua vontade.

Acima de tudo, é necessário escutar o que ela tem a dizer sobre seus sentimentos por conta dessa violência e como ela gostaria de redirecionar a sua vida, pois só assim será possível a adoção de medidas concretas que irão proteger seus direitos e tentar diminuir os sofrimentos físicos e psíquicos.

Se por um lado ouvir essa menina é essencial, de outro, temos coletivamente o dever de respeitar esse momento e impedir que outras violências sejam cometidas contra ela.

O Ministério da Saúde reconhece os graves riscos à saúde de uma gravidez na adolescência (considerando idades entre 13 e 19 anos), imaginem o que significa física e psicologicamente uma gravidez na infância? Em uma criança de 10 anos de idade?

Chama a atenção que foram divulgados em redes sociais o nome dela, o nome de sua avó e seus endereços, fazendo com que elas fossem procuradas para desistirem do aborto e ainda serem pressionadas por manifestações diante de suas residências. Isso tem um nome: violência! E tem outros também, como crime e violações éticas.

Esses dados das pessoas estavam em processos judiciais ou documentos de saúde. Processos que envolvem crianças e adolescentes são sigilosos para protegê-los da estigmatização social, por força do art. 227 da Constituição, e dados de saúde são sigilosos para resguardar a intimidade das pessoas e isso está bem claro no art. 73 do Código de Ética Médica. Quem divulgou esses dados, deve ser responsabilizado civil e penalmente por essa violação.

Um recorte feminista

A lei menciona o termo mulher e traz invisibilidade à questão de meninas e esse debate por si só já traz uma série de nuances, como já dissemos: meninas são mulheres.

E agora, voltando a outro texto de Saffioti (2001), precisamos analisar todo esse contexto sobre as lentes críticas sobre o patriarcado. Sendo a violência de gênero algo mais amplo, colocar estas lentes nos permite compreender de onde vem essa violência e por que ela permanece acontecendo.

Saffioti nos permite entender, assim como outras autoras, que o patriarcado pode ser delegado para outras pessoas, inclusive mulheres. Esse processo, que ela chama de “construção do patriarca” torna-se perceptível no caso de uma avó, que mesmo sendo mulher, tomou a decisão de esconder o fato, dentro de toda a sua hierarquia e contradição. 

É nesse contexto que se percebe a contribuição de mulheres para a permanência da violência de gênero, neste caso praticada contra uma criança de apenas 10 anos de idade, que deixou marcas aparentes apenas quando uma gravidez aconteceu. 

A pergunta que se faz é: por que isso acontece?

Vivemos em uma cultura focada no chamado androcentrismo, um termo da sociologia que permite entender que a sociedade se organiza em torno do homem e dos valores que ele cria. Homem, aqui entendido, como do sexo masculino. 

Estes valores são os mesmos que colocam este homem na figura do bom moço e a do estuprador como um monstro, ou algo imaginário, que não faria parte da sociedade. Essa hierarquia de valores colocados permite a chamada “cultura do estupro”, que nada mais é do que a forma de pensar coletiva sobre o que seria permitido ou não a nível de violação ou pensamento sexual.É este mesmo conceito que garante ao homem o abuso de poder sobre meninas. 

“O abuso sexual é caracterizado por uma progressão ascendente que inicia quando a criança é ainda muito pequena (5 a 10 anos nesta pesquisa) através de carícias mais sutis e torna-se mais explícito à medida que a criança cresce, ocorrendo a manipulação de genitais até relações sexuais orais ou genitais, freqüentemente na adolescência. Os abusos são mantidos em segredo, devido às ameaças e barganhas do abusador e aos sentimentos de vergonha e medo da vítima (Furniss, 1993; Habigzang & Caminha, 2004)”

Escute sobre a Cultura do Estupro neste episódio do Olhares Podcast

Esse texto não é apenas um convite à reflexão sobre por que o aborto deveria ser um direito humano garantido à mulher e todas as nuances que envolvem essa temática. Nós já falamos sobre isso. Mas, ainda assim, você pode aprender mais e se envolver ativamente com a luta pela discriminalização e conhecer o Movimento Nem Presa Nem Morta

Escute também o episódio do Olhares sobre Aborto e a participação da Aline no podcast Anticast Episódio #344

Nosso convite ao debate sobre direitos sexuais e reprodutivos

Em 2018 o debate sobre o aborto no Brasil estava bem presente, especialmente entre os meses de maio e setembro, quando aconteceu a audiência pública da ADPF 442 sobre a questão da descriminalização do aborto no Supremo Tribunal Federal. Parece até que essa thread foi feita hoje, mas ela já data de 2 anos atrás. Se de um lado temos os fundamentalistas das igrejas cristãs, de outro, há também ONGs que lutam pelo Direito de Decidir das mulheres. 

Fato é que o aborto como direito, garantido ou não, ainda é objeto de disputa política. Mesmo quando legalmente possível, mulheres enfrentam uma série de obstáculos para poder exercê-lo e a presença de grupos pró e contra o aborto ontem em frente ao hospital é a mais clara evidência de que não há garantia do seu exercício, no que remete às manifestações contra o direito ao aborto seguro nos EUA, conforme retratado no documentário Reversing Roe (sobre o julgamento Roe vs Wade).

Escute aqui um episódio do Roe vs Wade do Explica America

Outro ponto que se discute é sobre a necessidade da educação sexual nas escolas. Este é um assunto espinhoso para o atual governo. Atualmente, há previsão no Plano Nacional de Educação (volume 10 – Pluralidade cultural e orientação sexual) a respeito da necessidade de se discutir sexo nas escolas, que conservadores e a extrema direita fundamentalista entende como assunto próprio da vida privada e, portanto, restrita a pais.

Só que quando são esses mesmos pais que violam sexualmente suas filhas, e mães que escondem estes fatos, surge uma nova necessidade em discutir sexo e sexualidade nas escolas. 

São lições que permitem a crianças compreender o que é sexualidade e o que é consentimento. Que lhes ensinam sobre seu corpo e que elas, crianças e adolescentes, têm a possibilidade de conhecer direitos, reconhecer violências e denunciar quem as violenta, rompendo os ciclos de silêncio.

Esse caso mostra, de forma triste, as dimensões ou camadas de lutas que ainda são travadas para mulheres terem acesso a direitos.

Contribua com essa luta. Denuncie a violência sexual contra a mulher pelo Disque-180 e denúncias sobre violência sexual contra criança e adolescente no Disque 100, procure a Delegacia da Mulher ou outra delegacia policial, o Ministério Público ou a Defensoria Pública da sua cidade.

Aviso: Notícia às 14:06 no site do jornal O Globo informa que a criança realizou o procedimento médico e encontra-se bem, e acompanhada pela equipe médica.

Por: Aline Hack e Elisa Cruz

Só de ouvir, dá pra ver que é diferente.