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STF, legítima defesa da honra e feminismo: temos mesmo o que comemorar?

2 de março de 2021

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STF, legítima defesa da honra e feminismo: temos mesmo o que comemorar?

Estávamos na tarde de sexta-feira, dia 26 de fevereiro de 2021, e foi divulgada a notícia de que o Ministro Dias Toffoli havia concedido uma liminar para impedir a utilização do argumento sobre “legítima defesa da honra” em processos do tribunal do júri em julgamentos de crimes de feminicídio.

Essa decisão consta de um processo ajuizado no STF pelo PDT. No caso, trata-se de uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) que foi protocolada no STF pelo partido político para que o tribunal decida se é possível ou não usar esse argumento de defesa no júri.

A justificativa do PDT é que existem decisões contra e a favor da “legítima defesa da honra” e o STF deve tomar uma decisão em definitivo sobre o tema.

Desde a divulgação da notícia muito se tem parabenizado o min. Dias Toffoli pela liminar.

Alguns problemas na decisão: o primeiro

Acho contraditório e anti-feminista todas essas homenagens. Afinal, estamos aí celebrando a decisão de um homem e branco que apenas assinou uma decisão que tem sido construída há décadas pelos movimentos feministas e com resultados positivos, como, por exemplo, a condenação de Doca Street em 1981 pelo crime praticado contra Angela Diniz. A movimentação de mulheres contra a sua absolvição é contada no podcast Praia dos Ossos, projeto de Branca Viana.

Devemos também lembrar de Maria da Penha, vítima de muitos crimes praticados por seu ex-marido, e dá nome à Lei n. 11.343/2006 que busca medidas para a redução de crimes de gênero e oferecer algumas medidas de apoio à mulher vítima de violência, a mais conhecida, a proibição de contato presencial ou telefônico entre o homem suspeito ou acusado do crime e a mulher.

Por isso, a minha primeira crítica vai ao esquecimento de todas essas mulheres que ao longo de décadas tem se organizado para que a “legítima defesa da honra” seja usada. São elas e as suas vitórias que deveriam ser comemoradas.

Minha segunda crítica

Meu segundo comentário é que estamos erradas em apostar que o direito penal e a prisão podem ser capazes de enfrentar o machismo dominante na sociedade.

Quero deixar algo claro antes de continuar: a decisão é simbólica, mas com baixa possibilidade de fazer mudanças reais no Judiciário ou na sociedade.

Eu aprendi desde as primeiras aulas de direito penal que a pena (basicamente, a prisão) serve para punir a pessoa que praticou o crime, ressocializar essa pessoa e evitar que novos crimes semelhantes sejam praticados.

Contudo, cada vez mais pesquisas mostram que esses 2 últimos objetivos não são verdadeiros e não se realizam. Um exemplo para percebermos isso é o crime de tráfico: esse crime fez com que muito mais pessoas tenham sido presas desde 2003, data da última lei, mas nem por isso temos ou sentimos mais segurança nem o tráfico diminuiu. E, como hoje já sabemos que prisão não ressocializa, que sobre é apenas a punição: a pessoa é condenada e é presa ou a prisão é substituída por outras penas que autorizam que a pessoa cumpra em liberdade a sua condenação.

Talvez nesse momento você, leitora, pense: “ah, mas tráfico é diferente….”. Bem, por que o tráfico é diferente? Seria porque ele prende mais (e mata mais) homens pretos e pobres, e, por isso, é diferente da violência que uma mulher branca de classe média pode ser vítima? Se for por isso, precisamos pensar como cor, raça, etnia e classe social criam discriminações na nossa sociedade.

Eu gosto de fazer essa comparação com o tráfico porque, entendendo o tráfico e a violência contra a mulher como crimes, os dois, nós já temos muitas pesquisas que mostram que prender nunca ajudou a diminuir o crime. Por isso, podemos já imaginar que apenas punir não irá ajudar a diminuir crimes contra as mulheres.

Mas eu tenho um 2º motivo para não acreditar que essa decisão mereça tantos aplausos: Beatriz Marques, Regina Erthal e Vania Girardelli escreveram, tal como estou fazendo aqui, que o sistema penal não impede novos crimes. Mas também lembram que as mulheres não são ouvidas nos processos penais, não há apoio emocional ou psicológico para a mulher que sofre o crime e que o Judiciário é, na sua estrutura, patriarcal. E nenhum desses 3 pontos são resolvidos na decisão do STF.

Aliás, me chama muito a atenção que a decisão não se preocupa com a mulher vítima: não há nenhum cuidado especial a ela, que sofreu o crime. A proibição do argumento é direcionada à defesa e ao réu, colocando de novo o homem como destaque no processo criminal.

Terceiro e último argumento contra a decisão

Meu terceiro e último argumento: a sociedade é machista. E a votação dos jurados é sigilosa.

Existe uma pergunta no júri que é exatamente assim: “O jurado absolve o acusado?”. Qualquer, repito QUALQUER, motivo pode levar a absolvição. E os jurados não precisam explicar não. Só votar “sim” ou “não” se absolve.

Como acontece uma votação no júri: cada jurado ganha 2 votos, sendo 1 sim e outro não. A cada pergunta, sem poderem falar entre si desde o início do julgamento, o jurado escolhe 1 dos papéis para ser o seu voto. O voto, o 1º papel escolhido, vai para uma urna. Depois, se coloca o 2º papel na segunda urna apenas para conferência pelo juiz (para ter a certeza que são 14 votos, 7 sim e 7 não. Se não for isso, significa que alguém trocou papéis da votação e aí…. bem, outro tema).

A terceira pergunta da votação do júri, e que é obrigatória, é “O jurado absolve o acusado?”. É só votar sim ou não. Nada é falado, nada é dito e não é perguntado. Aliás, é proibido pela Constituição que se pergunte aos jurados o que eles votaram!

O que quero dizer com isso? Que numa sociedade machista, não é necessário que se argumente a legítima defesa da honra, porque as crenças individuais podem sozinhas levar a uma absolvição. E, como a votação dos jurados é sigilosa e não justificada, nunca se saberá o motivo.

Acho que devo repetir: não sou contra a decisão, mas não a comemoro como tantas pessoas das minhas redes sociais ou grupos feministas.

Gosto de uma postagem feita por Andrea Pachá, juíza no RJ, na noite do dia 26: “é uma decisão importante do @STF_oficial, mas não deixa de ser assustados, no século XXI, ter que comemorar que a honra de um homem não diz respeito à liberdade de uma mulher. E que ele não pode matar e ser absolvido por isso.”

Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.