As lições das Mulheres Negras, Latino-Americanas e Caribenhas
É grande o espaço de tempo que separa a formalização do fim da escravização de pessoas negras até os nossos dias.
Parece tão distante o passado de violências que desumanizou essas pessoas a ponto de haver certa dificuldade, no senso comum, em relacionar a escravização colonial com o lugar social que pessoas negras ocupam no tempo presente. Mas a relação é direta e fator determinante de problemáticas tais como o racismo, a ocupação de moradias e empregos precários por pessoas negras, o acesso mais dificultado dessas pessoas à políticas de educação e saúde, para citar alguns desses problemas. Às mulheres negras é reservado espaço ainda mais hostil: a elas, de modo geral, recai o peso do racismo, do machismo, e da vulnerabilidade social.
É o que mostram os dados do Atlas da Violência de 2020. O levantamento indica que, no Brasil, as mulheres negras estão nos lugares mais desvalidos. São elas as principais responsáveis pelo trabalho doméstico não remunerado, as que mais trabalham sem formalização de direitos trabalhistas, que chefiam famílias emocional e financeiramente, têm menos acesso à escolaridade formal, são vivências que exemplificam essa marginalização social.
A sujeição a qual as mulheres negras estão subordinadas é força motriz para que elas se organizem de forma a reagir contra a estrutura social que as marginaliza. Em 1992, houve o Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas, na República Dominicana. Na ocasião, mulheres negras de diferentes localidades do mundo se uniram de forma a refletir e articular novas vivências para mulheres negras, fora dos cenários de violência e desigualdade. Em sequência, junto à Organização das Nações Unidas (ONU), a rede que se formou a partir desse evento instituiu o dia 25 de julho como o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.
Hoje não é apenas uma data de celebração, mas principalmente a lembrança de que mulheres negras juntas refletem, se fortalecem e organizam novas realidades possíveis. A data reforça a ideia de que as mulheres negras estão em movimento, protagonizando reivindicações e buscando horizontes onde possam ocupar os centros, e não somente as margens sociais. No Brasil, em 2 de junho de 2014, foi instituído por meio da Lei nº 12.987, o dia 25 de julho como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, homenageando uma das principais mulheres negras brasileiras, símbolo de resistência e importante liderança na luta contra a escravização.
Chamo atenção a todas essas questões e me apresento: não sou uma mulher negra. Ao contrário, falo de um lugar social de privilégio. Como tantos brasileiros, sou filha da mestiçagem. Na união entre mãe negra e pai branco, nasci com a pele clara, cabelos cacheados, nariz largo, mas nada em meu fenótipo, por mais que existam aproximações com traços da negritude, me fizeram vítima de racismo durante a vida. Não posso, portanto, me considerar uma mulher negra, uma vez que é a experiência do racismo que marca e determina a existência de pessoas negras no Brasil. Todavia, ser filha de mãe negra me permitiu aprender desde cedo que, para os corpos de mulheres negras, a luta é condição essencial da existência.
Afirmar a própria humanidade para além dos estereótipos que reduzem as mulheres negras é uma vivência de minha mãe que acompanho desde muito cedo. Lembro de ouvi-la contar dos esforços que empreendeu, ainda enquanto namorada do meu pai, para ser vista enquanto uma mulher digna de dar e receber afeto e não somente uma figura sexualizada pela família dele, que era contra o relacionamento. Os intentos da família racista fracassaram. Os dois se casaram e permanecem. A existência de minha mãe me faz pensar que as reivindicações das mulheres negras não devem passar a largo de nós, mulheres brancas. Ao contrário. Nosso lugar social deve abrir espaços às vivências dessas mulheres e nossa postura de ser ativa de forma a ouvir, acolher e articular inserções possíveis de forma sanar desigualdades de oportunidades e ocupações de espaços.
O Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha é um lembrete. Às mulheres negras, que nelas há força, consciência e determinação para mover as estruturas. Às brancas, que devemos manter os olhares atentos à inclusão social de mulheres negras, de modo a diminuir os abismos sociais e implementar nova lógica onde a dominação e sujeição dessas mulheres não seja a lógica vigente da ordem social. Aos homens, que há espaço para aliados. E a todos, que outro modo de organização social é possível.