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É cansativo ser feminista

29 de março de 2022

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É cansativo ser feminista

Um desabafo sobre os feminismos que somos incapazes de alcançar

Vez ou outra me deparo com alguma militante dizendo para mim como é cansativo ser feminista. Lamentavelmente, a militância nos exige um critério que não escapa às categorias de gênero: a perfeição.

Quando eu digo perfeita, não estou me referindo aos padrões estéticos (não neste texto), mas a pré-requisitos de leitura, militância plural, presença na internet e em movimentos sociais emancipatórios (esses últimos nem sempre exigidos).

Digo por mim, quando eu entrei no movimento feminista, foi meio de supetão. Eu já contei isso em alguns podcasts que participei como convidada. Uma professora, feminista, me convidou para mudar a realidade de advogadas; eu, como sua admiradora, topei a empreitada.

O que eu sabia sobre feminismo? Nada.

Muitas mulheres chegam ao feminismo da mesma forma que eu, a partir da inspiração política sobre alguém admirável. Esta pessoa pode ser uma líder de comunidade, uma professora, uma jornalista, uma mãe, avó ou tia. Muitas vezes, esta musa inspiradora é uma pessoa que guarda tanta força que é impossível revidá-la, questioná-la, pois ela move tudo ao seu redor. E digo, ainda, muitas delas nem se nomeiam feministas, mas as mulheres que estão por perto sempre são levadas conjuntamente, há preocupação especial com as mais vulneráveis.

Grupos são formados, alguns deles capacitados em alguma leitura, filme, discussão feminista. Mulheres recebem instruções a respeito de seus direitos, de não sofrer violência, de locais onde buscar ajuda. A chegada do feminismo, assim chamado, acontece a partir dessas entradas. Foi assim que chegou para mim.

Para defender algo, é preciso conhecer o que se defende.

Eu conheci o feminismo por autoras como Simone de Beauvoir, Chimamanda Ngozi Adichie, Andrea Dworkin, Djamila Ribeiro, Sueli Carneiro, Susan Faludi, Naomi Wolf, Susie Orbach, Judith Butler, Flavia Biroli e Joan Scott. Algumas, à época, eu entendi, outras médio, outras nadinha.

Quando decidi criar o Olhares, eu era uma advogada feminista há poucos 4 anos, já tinha frequentado muitas reuniões sobre violência doméstica, dado palestras para escolas e grupos de mulheres vulneráveis. Eu sentia nestes espaços que o feminismo pouco interessava quando o assunto maior era saber como se proteger (para não dizer, sobreviver) em espaços de extrema violência.

É cansativo atender mulheres em situação de violência doméstica e vê-las retornando para seus companheiros, sabendo que a situação da “lua-de-mel” dura pouco, um mês, uma semana, às vezes apenas dias.

É cansativo ser didática, explicar e incentivar um feminismo político para quem não tem disponibilidade de tempo para comparecer em audiências públicas, manifestações, organizações coletivas, sendo que a culpa não é destas mulheres, mas de empregadores e coletivos que não se programam para receber mulheres com espaços para deixar seus filhos enquanto se mobilizam.

É cansativo quando inspiramos pessoas e estas, por sua vez, se mobilizam, falam, reclamam, buscam – mas ao mesmo tempo essas pessoas passam a ser perseguidas por suas próprias famílias, filhos e ambientes de trabalho.

É cansativo ver uma mulher sofrendo assédio moral (ou sexual) no seu espaço de trabalho e não conseguir dar a ela um caminho ou dose de esperança a fim de evitar que seu empregador mantenha o emprego do assediador, e não o dela.

É extremamente cansativo ouvir com frequência a frase “sempre foi assim”.

Desde 2013, eu estudo sobre feminismo todas as semanas. Eu já li muitos livros, produzo um programa nomeadamente feminista há 5 anos, pesquiso sobre feminismo no mestrado. Há algo que ainda não consegui resposta: como tapar tantos buracos.

A sensação que eu tenho é que quanto mais nos esforçamos, mais exigem nossas opiniões, como se fôssemos capazes de alcançar o mundo de todas as mulheres (e como se elas todas fossem iguais, imagine!)

Foi no Olhares e também nos meus estudos que aprendi que há muitos feminismos. Isso, no plural. Porque o feminismo é um movimento, mas também é método e epistemologia (ciência). E nesse tripé feminista, há muita subjetividade, seletividade, desigualdade e apropriação. Mas há muita luta também, há muito para se orgulhar e se inspirar.

E nisso eu vejo muitas feministas se atacando verbalmente, ameaçando linchamento virtual, diminuindo crimes e violências praticadas por conta de vertentes. Algo que ninguém fala é que a gente tem que defender a posição de uma mulher que tem uma posição política diferente da nossa, porque está sofrendo de forma escancarada algum tipo de violência (como se colocasse a culpa na vítima por ela ser liberal, radical, interseccional, queer, e por aí vai).

Você não sabe se protege ou protege a si mesma.

É cansativo ter que saber tantas teorias, tentar contemplar tantas mulheres, se pronunciar sobre absolutamente tudo, produzir conteúdo, ir a reuniões políticas, dialogar, pensar, ser presença na carreira acadêmica, ser advogada (ser irmã, ser tia, ser filha, ser esposa).

É cansativo alcançar essa perfeição, que não existe. Talvez neste texto eu tenha mesmo que dar os créditos ao Byung-Chul Han, estamos todas vivendo numa sociedade extremamente cansada.

Apresentadora e produtora do Olhares Podcast, é também mestranda em Direitos Humanos, pesquisadora e consultora em gênero e diversidade, palestrante e advogada.