Livro: Contra o feminismo branco, Rafia Zakaria
O novo livro de Rafia Zakaria, Contra o feminismo branco (2021), recém-traduzido para a língua portuguesa, é uma leitura fundamental para se pensar branquitude e os movimentos feministas.
A autora é advogada, feminista, ativista de direito humanos e jornalista, nasceu no Paquistão e emigrou aos 17 anos para os Estados Unidos.
Em seu livro Zakaria destrincha as problemáticas dos movimentos feministas principalmente o quanto esse priorizou a agenda das mulheres brancas, deixando totalmente de lado as questões que atravessam mulheres negras, marrons, asiáticas, ou nas palavras de Zakaria: mulheres de cor. É interessante mencionar que logo na introdução é trazida a discussão de porque o termo “de cor” é utilizado e mantido no livro, tendo como justificativa que durante muito tempo esse conceito foi utilizado de forma pejorativa, assim como “marrom” – esse último para descrever mulheres de pele escura, mas que não são negras, com as do Oriente Médio, América Latina ou sudeste asiático. A preocupação da autora em disputar narrativas hegemônicas sobre mulheres de cor se repousa principalmente no fato de que essas são afetadas não apenas pela desigualdade de gênero, como também pela desigualdade racial (ZAKARIA, p.24, 2021).
O título do livro faz alusão a máxima de que a supremacia branca no feminismo deve ser extirpada, pois, esse modus operandi criou e manteve a imagem da feminista branca como salvadora de todas as mulheres, excluindo assim a vivência e experiência de mulheres de cor e das não ocidentalizadas.
Contra o feminismo branco está dividido em oito capítulos, os quais de forma geral abarcam três grandes eixos de discussões. O primeiro concentra-se em problematizar o quanto são invalidadas as experiências de mulheres de cor, e como, ainda são inúmeros os desafios de um movimento feminista que versa tirar do centro as mulheres brancas. Principalmente, a partir da problemática da solidariedade feminista, essa que segunda a autora não funciona de forma horizontal, na prática. Nas palavras da autora, é necessário construir uma verdadeira solidariedade feminista que envolve expor e escavar a supremacia da branquitude no feminismo hoje (Ibidem, p.72).
Outro assunto tratado com muito afinco por Rafia Zakaria principalmente no capítulo três, são as problemáticas que envolvem o conceito de empoderamento, na forma como ele tem sido mobilizado pelo feminismo contemporâneo. Atrelado a lógica política, social e econômica do neoliberalismo, o empoderamento é trazido nas narrativas onde esse é associado à segurança e aumento das possibilidades femininas em sociedade. Porém, como a autora menciona o foco excessivo no termo produz uma despolitização entre as mulheres, afinal, essas passam a operar a partir da lógica individual, como se todas as conquistas dependessem apenas dessas e não tivessem influência do sistema capitalista ou dos marcadores de raça/etnia, sexualidade e classe.
Porém, cabe ressaltar o quanto esse termo foi se popularizando, principalmente na Conferência de Pequim de 1995 a qual tinha como tema mulher, igualdade, desenvolvimento e paz. Desde então, o que se pavimentou foi um vácuo na utilização e aplicação do que se entende por empoderamento, diferentemente do que a pesquisadora indiana Srilatha Batlwala definiu. Segundo ela empoderamento pode ser entendido como ‘um processo transformador de relações de poder entre indivíduos e grupos sociais’ (ZAKARIA, 2021, p.87).
Com isso se utiliza tal termo para qualquer coisa que faça alusão a poder individual, além da aplicação do empoderamento a todas as mulheres como se não houvesse uma multiplicidade de corpos, sexos e culturas, exigindo dos indivíduos a compreensão que existem inúmeros olhares sobre um mesmo tema que parte de perspectivas opostas. Um exemplo que evidencia isso é como as mulheres ocidentais brancas enxergam as feministas afegãs. Zakaria traz inúmeros relatos do quanto feministas brancas tiram a agência e autonomia de mulheres do Oriente Médio, sem ter a compreensão que essas são pessoas com perspectivas e posicionamentos políticos independentes. Tal contexto resulta no que a autora chama complexo de salvação branca.
Isso se aplica principalmente em como mulheres afegãs ou mulheres negras[1] lidam com suas sexualidades, corpos ou como exercem a maternidade. Esse último aspecto é ressaltado no capítulo cinco, na discussão feita sobre a relação que tem se feito entre liberdade sexual e empoderamento. A autora afirma que, do colonialismo ao neocolonialismo, populações inteiras são desprezadas com a imagem da mãe não branca fracassada, tida como evidência da inferioridade moral e da necessidade incontestável do altruísmo ocidental (Ibidem, p.172).
Com isso, a abordagem interseccional é trazida para a discussão a partir da afirmação de Crenshaw de que nenhuma justiça pode ser feita para as mulheres negras ou qualquer mulher de cor caso não for considerado tanto raça quanto, gênero na análise (Ibidem, p.223). Mesmo Zakaria compreendendo o quanto as abordagens interseccionais são difíceis, ela parte do pressuposto que não são impossíveis.
Por fim, acredito que a autora ao trazer todas as problemáticas intrínsecas no feminismo branco, em seus escritos, ela aponta possíveis saídas para que esse quadro mude. Principalmente pautando que para ser possível reconstruir o movimento feminista é necessário ter solidariedade para catalisar energia potencial em ações significativas (p.262). Essa solidariedade deve ter como fio condutor segundo Zakaria, o combate as formas de dominação capitalistas que é algo ruim para todas as mulheres, até mesmo as brancas (p.263).
O desafio que se estabelece e se evidencia no livro de Rafia Zakaria é o da possibilidade de se enxergar o mundo por meio dos olhos de outras mulheres. A autora afirma que isso é algo a ser realizado de forma individual e coletiva e se começa pelo entendimento de que isso as mulheres de cor têm executado já séculos (p.270). Com isso, contra o feminismo branco é um chamamento para que se reconstrua um feminismo do zero, que desloca as posições já bem estabelecidas de poder amparados no capitalismo e no colonialismo.
Para ler e entender mais:
ZAKARIA, R. Contra o feminismo branco. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.
Texto: Camila Galetti – Mestra e doutoranda em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisa Neoliberalismo, extrema direita, teorias feministas e antifeminismos. Integrante do Coletivo Juntas DF.