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Ainda sobre o estupro da criança no ES: Outras formas de proteção

26 de agosto de 2020

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Ainda sobre o estupro da criança no ES: Outras formas de proteção

Você achou que feito o aborto pela criança do ES que foi sexualmente violentada estava tudo acabado? Não! No texto de hoje da coluna eu mostro que a proteção a essa criança vai além do seu direito de optar ou não pelo aborto.

Na semana passada, o Olhares publicou um texto escrito por mim e pela Aline Hack sobre o caso da criança capixaba que foi sexualmente violentada por anos por seu tio e que estava grávida.

Mas tem mais algumas coisas que eu queria falar sobre esse caso.

O texto da semana passada tem essa informação, mas vale a pena relembrar: o caso envolve direito de uma criança, o que significa uma responsabilidade maior nas decisões para assegurar o seu melhor interesse.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define criança como a pessoa de até 12 anos de idade, e, adolescente, a pessoa entre 12 e 18 anos de idade. De acordo com o art. 227 da Constituição, crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento e por isso, TUDO o que envolve políticas públicas ou decisões sobre elas devem respeitar 2 princípios muito importantes: a proteção integral, que exige uma olhar completo sobre a situação de crianças e adolescentes, e o melhor interesse, que exige que os direitos deles estejam sempre colocados em primeiro lugar.

É com base nesses 2 princípios que eu posso escrever, com bastante segurança, que apenas a escolha do aborto não é suficiente para proteger, como exigem a Constituição e o ECA, essa criança.

A responsabilização do ofensor ou agressor

Muitos dos textos e opiniões que passaram nas minhas redes sobre esse caso envolviam o direito da mulher ao aborto. E, embora esse direito precise sim ser reconhecido na lei, não se trata de impor o aborto, mas sim o de permitir o exercício do aborto quando a mulher (adulta, criança ou adolescente) tiver interesse em realizá-lo.

Isso foi feito no caso, porque a criança teve acesso a uma equipe multiprofissional, composta de médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem, psicólogos e assistentes sociais, e, ela, junto com esses profissionais e a sua família, optou pelo aborto. E a decisão pessoal da criança tem que ser respeitada, feita em ambiente seguro e assegurado o consentimento informado, e deveria ser respeitada se a manutenção da gravidez tivesse sido a resposta.

E esse é o processo que se deseja expandir a todas as mulheres. Direito de escolha apoiada.

Mas, uma vez que o caso também envolve violência sexual contra a criança, também é necessária a responsabilização criminal do agressor. Mais do que visibilidade ao direito de escolha ao aborto pela criança, deveríamos ter discutido sobre quais fatores contribuem para a violência sexual contra a criança, formas de combater essa violência e formas de responsabilizar criminalmente o agressor.

Esse ponto até parece estar evoluindo, com a notícia da prisão do agressor, mas é incômoda a importância que se deu ao aborto da criança e não à tragédia da violência que ela sofreu.

Precisamos entender que ela foi vítima e uma resposta estatal é necessária para que ela possa iniciar as etapas de superação de violência de forma segura, sem riscos a si e a outras pessoas com quem mantém laços de afeto e, para isso, é essencial que o processo criminal de apuração do crime praticado contra ele aconteça e seja ágil.

A proteção na vida real

As projeções em mídias que esse caso alcançou tornam difícil a possibilidade de a criança e sua avó retornarem para morar no mesmo local em que moravam. Os riscos a ela são muito altos, considerando que até dentro do hospital ela foi procurada e constrangida a não realizar o aborto. Por mais que o Estado brasileiro tenha que assegurar segurança a todos e todas nós, seria difícil implementar esse grau de individualidade na proteção.

Por essa razão, desde o início eu já cogitava a possibilidade de a família ser incluída no Programa de Apoio e Proteção às Testemunhas, Vítimas e Familiares de Vítimas da Violência (PROVITA) e o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), instituído pelo Decreto n. 6.231/2007 e hoje regulado pelo Decreto n.  9.579/2018. Esse programa tem por principais objetivos: a) transferência de residência ou acomodação em ambiente compatível com a proteção b) apoio e assistência social, jurídica, psicológica, pedagógica e financeira; e, c) preservação da identidade e da imagem do protegido e manutenção do sigilo dos seus dados e das informações que, na forma prevista em lei, comprometam a sua segurança e a sua integridade física, mental e psicológica.

A inclusão nesse programa deve representar uma nova forma de reinício para assegurar a vida de crianças, mas, para que isso aconteça, é preciso cortar todos os laços anteriores para que se torne irrastreável. Parece simples, mas, não. É uma consequência cruel que uma violência ou ameaça podem significar, porque exige que se deixe toda a vida do passado para trás e/ou ganhar um novo nome, não sendo permitido nenhum contato, pois, caso aconteça, o antigo agressor pode conseguir localizar sua vítima ou a descoberta do seu passado podem trazer novos riscos à sua vida.

Não a toa, a inclusão nesse programa ainda não foi decidido, mas está em pauta, já tendo sido oferecida essa oportunidade.

Importante dizer que felizmente o Espírito Santo tem o PPCAAM instalado e conta com convênio federal de repasse de cerca de 3 milhões de reais para as despesas do programa, a serem complementadas em outros 3 milhões de reais pelo Governo do Estado, que, por sua vez, contribuem para o pagamento do Centro de Apoio dos Direitos Humanos Valdício Barbosa dos Santos – CADH, que é responsável por executar esse programa no âmbito estadual até 2022. Importante destacar que esse ano o CADH já recebeu 3,4 milhões do Governo do ES até 23/08/2020, de modo que existem recursos transferidos para que ocorra essa proteção.

E se fizermos isso, tudo fica bem?

Na verdade, o caminho para a superação desse histórico de violência é longo, e essas medidas são apenas parte do caminho. Reinserção de moradia, possibilidade de brincar, reconstrução dos vínculos com os seus familiares, oferecimento de renda mensal, oferecimento de apoio educacional, médico e de saúde, serão fundamentais para contribuírem para a retomada da vida dessa criança como criança.

Se você se interessou para saber mais sobre o PPCAAM, recomendo essa cartilha aqui.

Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.