Colunas Destaque Para entender o feminismo

Não era amor, era estupro.

5 de abril de 2022

author:

Não era amor, era estupro.

Quando uma grande história de amor vem seguida de diversos traumas

(Atenção, este texto é sobre abuso sexual. Se você tem alguma sensibilidade a este tema, recomenda-se não prosseguir na leitura).

A frase desta matéria foi a primeira percepção que tive após ler o capítulo do livro da autora Catharine MacKinnon, Rape: on coercion and consent (em português, a tradução seria algo como “Estupro: por coerção e consentimento”). No texto, a autora explica que não existem relações heteroafetivas entre homens e mulheres que não sejam de forma coercitiva, uma vez que a sociedade patriarcal submete às mulheres a tipos de relações sexuais não desejadas, obrigando-as socialmente a tê-las. Esta é uma visão de uma das vertentes do feminismo radical.

No início do episódio sobre Feminismo Radical falamos que há várias vertentes dentro desta linha teórica, apesar de não nos debruçarmos sobre todas elas.

Há quatro anos, cursei uma matéria denominada “Direitos Sexuais e Reprodutivos”. Nesta matéria, discutíamos a respeito da “sutileza” das relações amorosas a respeito do consentimento. Para o direito, o consentimento é algo manifestamente declarado, não está nas entrelinhas ou no subentendido. O consentimento é o “sim” do casamento manifestado na igreja ou no cartório, mas também pode ser a iniciativa de um ato. Um não, um talvez, um silêncio são as manifestações do não consentimento.

Para o direito, inclusive, quando você está em situações de vulnerabilidade (entenda fora do juridiquês: situações em que não pode estar 100% no seu juízo perfeito), você não está apta para dar consentimento a nada.

Logo, situações de influência de álcool e drogas, situações de trauma, danos psíquicos, menoridade – todas são consideradas estados de vulnerabilidade, ou seja, quando a vítima não está apta para dizer com certeza o que, de fato, deseja.

Recentemente, tenho observado como a mídia tem tratado o estupro dentro das chamadas “relações consentidas” em séries de TV. Nesta mesma disciplina cursada, analisamos o estupro acontecido no filme Assédio, de Bertolucci (sobre o tema Assédio, a ele cabe um texto próprio). A partir daí, a percepção sobre consentimento passou a ficar mais aguçada, e deixo aqui algumas que tive nos últimos tempos.

Meu primeiro incômodo para escrever este texto foi a cena de Camille e John na série Sharp Objects. Aquela situação, pra mim, é uma clara cena de estupro, quando o abusador se aproveita da vulnerabilidade da mulher para ter uma relação supostamente consentida com ela. Apenas pra contextualizar, na série, a personagem Camille Preaker – interpretada pela atriz Amy Adams – convive com muitos traumas e um deles é oriundo de situações de estupro sofridas na adolescência.

Na cena, John, antigo “namorado” de Camille, com quem ela já teve relações abusivas na adolescência, investe para ter com ela a relação sexual. Ao meu ver, é claro na cena que a relação que não é 100% consentida, pois Camille passa por momento pós-traumático, enquanto, ao mesmo tempo, investiga uma série de assassinatos em sua terra natal.

Cena Fonte: Sharp Objects S1E06 (Créditos: HBO)

Muitas vezes, mulheres estão em situação de vulnerabilidade quando estão em posição de poder desigual, como acontece em situações de casamento, união estável, parentais ou de trabalho.

Muitas mulheres se relacionam de forma não consentida diante do medo. Elas possuem uma relação de afeto com a pessoa que as abusa, e não conseguem dizer não, seja porque acreditam que isso faz parte da relação amorosa, porque têm medo de “desrespeitar” a outra pessoa, ou por medo de perder o emprego, por exemplo.

Uma das formas mais claras de se descobrir isso, diz respeito a como você se recorda das coisas, o que fica muito claro nas cenas da Hanna conversando com Mitch na série The Morning Show ou de Alex, na série The Bold Type, quando ele descobre que abusou sexualmente de sua ex-namorada.

Cenas The Bold Type: S03E03 (Créditos: Netflix)

Quando uma mulher descobre que foi abusada sexualmente, a primeira reação que ela possui é culpa. Sabe por quê? Porque o medo paralisa.

Nos sentimos incapazes de discernir sobre o que está acontecendo naquele momento. É como se fôssemos teletransportadas mentalmente para outro lugar. Esse lugar, quando conseguimos acessar novamente, geralmente por meio de processos terapêuticos, nos levam a uma culpa enorme por não ter conseguido reagir, por ter “consentido” com a violência, por ter se mantido calada.

E quando uma mulher de nosso círculo social se manifesta a respeito, ou alguém de nossa família traz uma exposição sobre abuso, caem as fichas. Quantas de nós não fomos abusadas em relacionamentos amorosos com pessoas que realmente confiávamos?

Cai aí o mito do estuprador estranho, no meio da rua, em um beco escuro.

Muitas mulheres são vítimas de estupro e continuam convivendo socialmente com seus estupradores. Muitos deles são pais, tios, avôs, amigos da família, vizinhos. Alguns deles se tornam namorados, em relações doentias.

De acordo com pesquisa recente do Instituto Patrícia Galvão, 64% da população – e duas em cada 3 mulheres – conhece ao menos uma mulher ou menina que foi vítima de estupro, e 16% das mulheres entrevistadas foram vítimas de estupro.

Falamos sobre a cultura do estupro neste episódio

Infelizmente, muitas das vítimas não sabem a quem recorrer nestas situações. Pelo menos, a conscientização a respeito das situações onde o estupro acontece, está crescendo, conforme aponta o estudo.

Fonte: Instituto Patrícia Galvão (2022)

Alerto para o fato de que 31% das pessoas entrevistadas ainda não consideram que um marido/parceiro obrigar a mulher a fazer sexo sem preservativo seja considerado estupro, 13% concordam que a culpa “nem sempre é só do estuprador”, demonstrando que talvez MacKinnon estivesse certa neste aspecto.

O fato é que 95% das mulheres tem medo de ser vítima de estupro, e este medo não é à toa.

Apresentadora e produtora do Olhares Podcast, é também mestranda em Direitos Humanos, pesquisadora e consultora em gênero e diversidade, palestrante e advogada.