Gênero e a nossa própria humanidade em jogo
Quando essa coluna começou, a ideia principal era apresentar uma nova leitura ou perspectiva de temas jurídicos a partir do feminismo.
Mas a realidade impõe-se às ideias iniciais, e isso é bem bom.
Em poucos meses, já abordei o que é divórcio impositivo ou unilateral e como afeta a vida de mulheres, analisei uma pesquisa do IBGE sobre a realização de tarefas domésticas entre homens e mulheres casados/as ou solteiros/as e, na última coluna, a correlação entre aborto e loucura.
Acho que o tema da vez é gênero.
Dia 27 de junho, Jamil Chade noticiou que o Brasil apresentava vetos à utilização da palavra gênero nas resoluções da ONU, no que foi seguido apenas por países como Rússia, Paquistão e Arábia Saudita, e causando profundo constrangimento com outras representações diplomáticas.
Gênero, para a finalidade que pretendo discutir, é uma questão social e de construção de identidade, em que uma pessoa se reconhece como feminino/a ou masculino/a independentemente do sexo biológico ou da sua orientação sexual.
A compreensão de gênero quebra com a lógica com a qual estamos acostumados de que a presença de vagina significa que a pessoa é mulher e do pênis, homem.
Um aspecto é o sexo biológico, definido pelos sinais designativos de homem e mulher; outra questão é a identificação da pessoa com esse sexo biológico ou não. Este último ponto nos traz ao debate de gênero.
O debate de gênero no direito civil (ao qual vou me restringir, por ser a minha especialidade) é bem difícil, porque 1) é um direito histórico, com raízes no direito romano; 2) por essa razão, centralizado na dualidade masculino/feminino e com papeis bem delimitados pelo sexo. E isso é bem fácil de demonstrar: a parte de direito de família trata de casamento e união estável por homens e mulheres, desconsiderando por completo a existência de pessoas que não se identificam com nenhum dos dois gêneros masculino ou feminino.
Sobre isso, quem auxilia o direito civil são o direito constitucional e a teoria da justiça com debates sobre reconhecimento e inclusão, o que, significa dizer que se debate sobre como se assegura visibilidade e presença jurídica a pessoas que não tem naturalmente uma posição que o direito reconheça como válida, e, de outro lado, como essas pessoas passam a ter o exercício de direitos possíveis perante o direito e a sociedade.
Para quem já ouviu ou leu sobre esse debate, pode parecer simples, mas ele não tem nada de simples.
Debater gênero significa tratar de como é possível exercer a sexualidade no dia a dia (tecnicamente, chama-se performance), sem fazer nenhuma distinção quanto a essa pessoa em relação às demais.
Significa que qualquer que seja o sexo e o gênero, a pessoa possa votar, casar, deixar herança, fazer contrato, ser pessoa, usar a internet, manifestar sua opinião e não sofrer violência física ou psíquica por conta dessas escolhas.
No momento em que o Estado brasileiro proíbe que se use a expressão gênero pretende-se, com isso, de forma sorrateira (enganosa, podemos dizer), retomar a divisão de que mulheres são sempre do gênero feminino e que homens são sempre do gênero masculino, e que serão tratados dessa forma.
Ou seja, significa voltarmos algumas décadas para achar que o mundo é assim simples, dividido perfeitamente entre homens e mulheres que serão homens e mulheres.
Mas isso é não é verdade!
Pode nos trazer segurança porque poderíamos olhar alguém que tem seios e cabelo comprido para afirmamos que é uma mulher. Mas essa segurança é feita à custa do que outra pessoa sente, porque esses sinais externos não significam que é o que a outra pessoa sente e se identifica.
Talvez o maior conflito no debate de gênero seja entre essa vontade de nos sentirmos seguros e a incapacidade de permitirmos ao outro ser quem ele quer ser: reconhecer no outro uma pessoa que tem desejos e vontade própria significa gastar mais tempo para ouvir o outro, o que é, por um lado, difícil, e de outro lado, demorado, considerando que no mundo de hoje queremos respostas prontas e imediatas.
Se isso já é um problema bem sério em relações pessoais, porque fazem com que deixemos de ouvir as demais pessoas, essa falta de reconhecimento do gênero é muito mais grave se quem impede esse debate é o Estado.
Quando é o Estado quem proíbe falar sobre gênero significa que essa instituição fictícia e que foi criada para administrar os interesses comuns está indo contra o interesse de alguns, e em temas que não têm nenhuma relação com sociabilidade ou como as pessoas interagem entre si.
A negativa do Estado em falar sobre gênero coloca no esquecimento e no obscurantismo as pessoas que, com muita luta, têm buscado serem reconhecidas como cidadãos com iguais direitos a todas as outras.
A negativa do Estado em falar sobre gênero significa abrir caminho para que essas pessoas possam exercer seus direitos da mesma forma que as outras, que se identificam com os gêneros “normais” têm, como casar, ter filhos, ter plano de saúde, assinar contratos, comprar imóveis etc.
Essa negativa e esse costume de achar que “é isso mesmo” ou não reconhecer que não, não é normal ignorar o outro, é um processo de desumanização profundamente violento e deveríamos estar mais “pistolas”, com mais raiva, com mais irresignação.
Para terminar, deixo um trecho de um dos meus poemas favoritos, de Marina Colasanti:
“A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde de si mesma.”