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O que aconteceu na bienal afeta todos nós

11 de setembro de 2019

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O que aconteceu na bienal afeta todos nós

Desde sexta-feira, dia 06/09, tem ganhado bastante destaque nas mídias e redes sociais a tentativa da Prefeitura do Rio de Janeiro em apreender livros com temática LGBT sob o argumento de necessidade de proteger crianças.

Existem várias formas de apresentar o debate, como, por exemplo, a partir do direito infanto-juvenil e das pessoas LGBT. No espaço do Olhares Podcast, precisamos pensar em que medida essa decisão afeta os direitos das mulheres e a pauta feminista.

Em um primeiro momento, podemos imaginar que não exista nenhuma relação entre a apreensão de livros e direitos das mulheres, uma vez que os argumentos utilizados eram sobre “proteção da criança”, censura e liberdade de expressão. Mas olhando mais de perto, o ato da Prefeitura é mais uma atitude da pauta moral conservadora que tenta silenciar quem não possui os mesmos valores dominantes.

Primeiro: Quem tomou a decisão de apreensão? Foi a Prefeitura do Rio de Janeiro, que tem como Prefeito um homem branco e evangélico conservador.

A Prefeitura do RJ conta com 17 Secretarias municipais ou órgãos equivalentes à Secretaria (como, por exemplo, a Casa Civil), nenhuma sobre mulher, criança ou pessoas LGBT. Há a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos que conta com subsecretarias de Direitos Humanos e outra de Integração e Promoção da Cidadania, e que tem pastas para diversidade religiosa, mas não tem para inclusão social de diversidade de gênero. Das 17 secretarias, apenas 3 são ocupadas por mulheres, o que significa menos de 30% de ocupação feminina.

Segundo: Qual foi o motivo da decisão?

De acordo com as redes sociais do Prefeito, “a decisão de recolher os gibis na Bienal teve apenas um objetivo: cumprir a lei e defender a família. (…)”. Considerando a estrutura da Prefeitura essa fala já deve, por si só, ser questionada, porque crianças sequer são preocupação efetiva do município, pois não contam com nenhum órgão de proteção dedicado a elas (para não ser injusta: existe o conselho municipal, mas ele é exigência do ECA e não decisão política do Prefeito).

Essa lei citada no argumento seria o ECA, que proíbe a divulgação de imagens pornográficas a crianças. A tentativa é de associar a imagem de 2 homens se beijando a um ato proibido e a um ato pornográfico. De forma sutil, muda-se a forma de comunicação discriminatória contra a homossexualidade, não mais falando diretamente contra a pessoa homossexual, mas fazendo com que as pessoas a associem a valores degenerados ou errados. Essa forma de se comunicar é adotada com a intenção de cooptar novos entusiastas que se preocupam com o discurso contra o perigo sem pensar no que está por trás desse tipo de fala. Além disso, acaba por reduzir as chances de responsabilização, porque a fala sempre é “para proteção”.

 O que não pode ser esquecido é que a homossexualidade e outras orientações sexuais não heteroafetivas não são pornografia por si. A pornografia, entendida como o material que desperta pensamentos sexuais de forma explícita, está presente em qualquer orientação sexual.

A pornografia é o ato, não a orientação sexual ou o gênero. E sequer a pornografia é ilegal.

De outro lado, temos também o argumento de defesa da família. Mas não toda família, a família que compartilha os mesmos valores ultraconservadores do chefe da Prefeitura do Rio de Janeiro.

Não há família como modelo único. Existem famílias, que possuem organizações muito próprias e diferentes: existem famílias de irmãos/irmãs (porque moram sozinhos longe de casa, ou porque são órfãos), outras compostas por homem ou mulher e seus filhos/filhas, e ainda de pessoas idosas que decidem se reunir para cuidar uma da outra em idade mais avançada. Família na sociedade e no direito é muito mais do que pai/mãe/filhos/filhas.

Acredito que ao destrinchar as partes do discurso oficial da prefeitura já tenha ficado claro os riscos da sua disseminação e os impactos que causam na luta feminista. Significa que para a Prefeitura de uma das maiores e mais importantes cidades do Brasil apenas quem é conservador, heterossexual e está numa família de modelo tradicional pode fazer prevalecer sua opinião e pode sujeitar as outras pessoas às suas escolhas.

De forma mais explícita: quem não se adequa a esses padrões, não tem espaço e não tem acesso à proteção.

Então, você, mulher, mãe solo e negra que se organiza da melhor maneira possível para dar conta das suas responsabilidades, não é reconhecida como parte da população que pode ter direitos. A mulher branca fora de um casamento heteronormativo também não. A criança que não tem acesso à creche ou escola porque não tem vaga, também não.

Podemos então concluir que existem 2 níveis de violência no que aconteceu:

Existe uma violência bem direta às pessoas LGBT, porque com a sutileza das palavras mas a força da carga simbólica que elas carregam, foram violadas na sua existência quase que dizendo que “elas não merecem fazer parte da sociedade”.

E também a violência simbólica aos demais grupos em vulnerabilidade, porque a força do ato praticado reforça a vontade política de eliminação das minorias, das quais mulheres fazem parte na história.

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Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.