Colunas Mulheres e o Direito

A falsa discussão sobre economia e saúde: As pessoas em primeiro lugar

27 de março de 2020

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A falsa discussão sobre economia e saúde: As pessoas em primeiro lugar

Os últimos dias têm sido um profundo desafio para cada um de nós, tanto individual como coletivamente. Assuntos como saúde, trabalho, segurança, assistência e família tem se projetado com intensidades (maiores ou menores, melhores ou piores) do que antes nas memórias que guardamos.

A pergunta que eu me fiz para escrever esse texto foi: O que eu teria para falar nesse momento? E, ao começar esse texto, eu não saberia responder a essa pergunta.

Uma amiga comentou, num dos vários grupos em redes sociais, que “tudo parece tão pequeno diante dos desafios que estamos passando”. Num outro grupo, eu, sim, eu, Elisa, critiquei colegas do meio jurídico que não paravam de falar sobre cancelamento de viagens e reembolsos de passagens; afinal, todos debates jurídicos têm que ser sobre viagens? Ou sobre prazeres que nesse momento não podemos aproveitar?

Como alguns outros amigos e amigas fazem parte dos grupos onde ambas as conversas aconteceram, alguns de nós começamos a falar separadamente sobre o que nós achamos que está perante o Direito: a pessoa.

Ao olhar sobre a vida anterior a meados de março de 2020, a vida era uma série de momentos sobre arrumar a casa, fazer comida, ir pro trabalho, limpar a casa, cuidar dos filhos|as, pagar boletos, se divertir no final de semana…. (preencha com fatos da sua vida). Essas atividades estavam, de alguma forma, concentradas em ganhar dinheiro e gastar o dinheiro, por obrigação ou por prazer, quando dava.

Isso se refletia de uma forma bem clara no Direito: tratar de contratos e obrigações, pensar nos deveres jurídicos que tornava possível essa série de obrigações da vida do dia-a-dia acontecer.

A mim, e a esse grupo de amigos e amigas, nos parece que estamos sendo exigidos a pensar que por trás de todos esses contratos e obrigações patrimoniais existem pessoas.

De fato, contratos, relações de consumo, famílias, viagens, sequer cuidados básicos podem existir sem que uma pessoa esteja por trás. Diante do debate público de saúde versus economia, é evidente para nós a escolha pela saúde das pessoas, porque nós somos a base que permite que todo o mais e todo o resto possa acontecer.

A importância que a pessoa assume no momento atual exige certas mudanças nas perguntas a serem feitas:

O que é preciso fazermos para garantirmos a nossa saúde (física e mental)?

Como garantir a nossa segurança e bem-estar?

O que é necessário como assistência pública?

Como lidar com os impactos no trabalho e geração de renda?

Como lidar com ausências?

Como lidar com nossas famílias?

Não pretendo dizer as respostas a essas perguntas que afetem as nossas vivências mais íntimas e profundas, porque as alternativas são tão pessoais que apenas podemos compartilhar as nossas experimentações. Assim, eu posso dizer que tenho tentado comer legumes e verduras, me manter ativa, ligar pros amigos e me manter em casa, em isolamento, porque a minha posição social me garante essa possibilidade.

Mas pensando coletivamente, preciso dizer que:

  1. Não há saída individual;
  2. O papel da sociedade e da organização do Estado (país, Brasil), é essencial durante esses dias.

É dever dos governantes e administradores do país adotar medidas que minimizem os efeitos da pandemia sobre a população. Não é simples “favor”, mas dever, parte das atribuições que eles se obrigaram ao prestarem seus compromissos de posse nos cargos eletivos ou demais cargos públicos, tais como os deveres que assumimos ao nos responsabilizarmos por um novo emprego.

Mais do que a minimização dos efeitos na saúde, com medidas de redução da disseminação do vírus ou a melhoria do serviço de saúde pública, são necessárias também medidas de assistência pública, previdência e trabalho e renda.

A previdência pública funciona como um seguro público em certas circunstâncias e para quem é segurado. Diante de notícias, ainda pendentes de confirmação por estudos científicos das consequências da infecção por Covid-19 no longo prazo, temos que refletir sobre os impactos na previdência, em especial se ocorrerem incapacidade laborativa parcial ou total que levem as pessoas a necessidade de se aposentarem.

No âmbito da assistência social, deve-se pensar em garantir uma sobrevivência digna mínima a todas as pessoas que não tiverem renda para custear as suas necessidades. A ausência de preocupação com a entrada de pessoas em situação de pobreza viola diretamente o art. 1º da Constituição da República e reduz o nível de segurança social que todos nós experimentamos. É perder um pouco de si ao diminuir as condições de vida do outro… É aqui que se tem feito o debate sobre renda mínima e que se conecta com o terceiro ponto a ser destacado.

Por fim, é essencial a adoção de medidas efetivas de proteção ao trabalho e à renda. Em relação aos trabalhadores com vínculo formal – CLT – é necessário, de um lado, assegurar a manutenção dos empregos e impedir que o poder econômico e de fato dos empregadores prevaleça sobre os empregados, que, em português corrente, seriam “o lado mais fraco”. Quanto aos trabalhadores informais, deve-se adotar medidas que, na minha opinião, seriam mais próximas da assistência e assegurar renda mensal similar àquela que era usufruída antes ou um mínimo para a sobrevivência.

Do ponto de vista jurídico, não há nenhuma dúvida de que todo o sistema jurídico e político do país tem que se redirecionar para a proteção das pessoas. Nada existe sem que a nossa dignidade esteja garantida.

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Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.