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A liberdade do isolamento social

10 de julho de 2020

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A liberdade do isolamento social

Vivemos uma nova realidade: estamos em quarentena, o Corona vírus é uma realidade aterradora, os números passam da ordem de milhões em todo o mundo. O que nos resta é nos precaver e ficarmos em casa, presas o quanto é possível.

Evitar a morte é uma constante do ser humano, portanto, nada mais natural que esse distanciamento social, ficar presa num local por muito tempo, estar o tempo todo com medo de se expor, de estar à mercê da sociedade.

O que muitas pessoas não percebem que essa é a realidade de inúmeras pessoas trans, o medo, o estar presa, ficar temendo por sua vida é uma constante. Quem se sente num corpo que não é adequado a si está numa prisão, está apagando sua alma, seu real existir.

Liberdade da alma

Estou em quarentena há cerca de 120 dias, no período tive altos e baixos, mas em nenhum momento esses altos e baixos foram causados pela minha condição de ser trans. Pelo contrário, esse momento tem servido para minha afirmação. Acordar, poder me olhar no espelho, passar um batom, fazer uma maquiagem leve e trabalhar tem sido reconfortante.

Esse processo de quarentena veio justamente no momento que comecei a terapia hormonal. E me veio nessa semana o seguinte pensamento: quando voltarmos ao trabalho presencial creio que serão nítidas algumas mudanças.

É muito estranho estar vivendo um momento de libertação justamente quando a maior parte das pessoas estão presas, estão tendo de se adaptar a um mundo novo. Nós pessoas trans temos de nos adaptar, criar escudos, personagens, nos isolarmos não de uma forma física, mas de nosso próprio existir. Como dito anteriormente nós fazemos uma quarentena de nossos sentimentos, de nossa personalidade.

Quando voltar à normalidade, o que chamamos de trabalho presencial, será uma experiência interessante, pois creio que haverá um estranhamento em relação a minha pessoa, pois algumas mudanças estarão bem evidentes. Talvez um sentimento de incômodo e também curiosidade para entender que algo está diferente.

A saúde mental

Nas raras ocasiões em que fui à rua, saí feminina, de máscara, não uma máscara social, mas uma física que esconde traços ditos “masculinos”. Desta forma saio sem a preocupação de ser julgada, isso tem muito a ver com essa paz que tenho vivido. Não é pedir muito poder viver essas mudanças em momentos de normalidade institucional.

Não podemos prever como seremos tratadas ao revelarmos a nossa real identidade, muito menos se nada vai mudar. De tal forma é tudo uma incógnita para quem vive nas sombras de um mundo machista. Ser trans é estar o tempo todo preocupada, não com o que vão falar de você, mas como será tratada em situações corriqueiras.

Muitas vezes me falam de coragem, mas acho que o termo correto é sobrevivência: entre anular a alma, perder o sentido da vida e ser você mesma, ser feliz mesmo com obstáculos não tenho dúvidas, é uma questão de boa saúde mental.

No fim das contas, esse momento de reclusão forçada tem servido como um ato de libertação, as paredes da sala são apenas mais um obstáculo, o que importa é que a alma está livre, a mente está transcendendo os limites da imaginação e tudo está se materializando.

Fabris Martins, mulher trans, publicitária, designer e podcaster.