A mãe cuida e o pai paga pensão?
Mentiras e verdades sobre alimentos (parte 1)
No primeiro texto desta coluna, abordei como o Direito tem a pretensão de tratar de todas as pessoas como iguais e como essa tentativa acarreta uma série de problemas, pois a igualdade de todas as pessoas não existe no mundo real. Apresentei também a proposta de superar essa pretensão universal de igualdade a partir da vulnerabilidade, um conceito que, na minha opinião, traz à tona pontos específicos que se relacionam com a idade, gênero, cultura, filosofia, identidade, economia etc. e permite entender melhor quem é a pessoa real, suas potencialidades e dificuldades.
À época, usei a guarda de filhos/as como exemplo de como o Direito e a realidade se distanciam no tratamento igualitário das pessoas, pois, de acordo com dados do IBGE, mais de 70% das guardas que foram decididas pelo Poder Judiciário em 2017 foram entregues a mulheres.
Ao lado da guarda, acredito que o tema alimentos é também muito importante para confirmarmos que
- O Direito se distancia da realidade;
- Existe uma influência no papel da mulher na família ao se decidir alimentos.
Farei essa discussão em três posts distintos: o de hoje, dedicado aos alimentos que são pagos por pais e mães aos filhos/as. Em um segundo post, abordarei dos alimentos devidos à mulher em razão de casamento ou união estável; e, no terceiro, pretendo tratar do processo de cobrança dos alimentos e como ele sobrecarrega as mulheres/mães.
Mas já faço uma importante observação: o tema alimentos está presente em outras situações, como os alimentos devidos entre parentes (descendentes, ascendentes e irmãos) e beneficiam homens, mulheres, adultos, crianças, pessoas idosas, pessoas com incapacidades e inclusive nascituros. Desse tema amplo, destaquei os tópicos acima para fazer o debate entre direito e gênero.
No direito conceituamos alimentos como uma verba, uma prestação ou simplesmente valores que são pagos a uma pessoa como forma de manter a sua (sobre)vivência.
São bem mais do que a possibilidade de comprar comida, e também servem para vestuário, cuidados de saúde, moradia, educação, cultura, transporte e tudo mais que se fizer necessário para viver.
Têm direito a alimentos – assim como tem o dever de fornecer alimentos – cônjuge, companheiro/a, descendentes, ascendentes e irmãos. Podemos, assim, dizer que os alimentos são recíprocos entre essas pessoas, mas, para que não haja confusão sobre a quem devemos cobrar primeiro, e sendo o caso de parentes (cônjuges e companheiros/as não são parentes, então, o que escreverei a seguir não vale para essas pessoas). O Código Civil manda primeiro cobrar dos descendentes (filhos, netos, bisnetos etc), depois dos ascendentes (pais, avós, bisavós etc.) e depois, irmãos.
E quanto se paga de alimentos? Bem, escutamos tanto em 10%, 15%, 20%, mas a verdade é que para o Direito não há valor fixo.
Os alimentos têm o valor que quem vai receber precisa, e quem vai pagar, pode pagar. A isso chamamos de critério de possibilidade/razoabilidade.
A decisão sobre o quanto um precisa e o outro pode é bem difícil de ser feita, e para isso é importante mostrar, por um lado, os gastos que a pessoa que vai receber os alimentos tem, e, de outro lado, qual a renda de quem vai pagar, ou seja, o quanto a pessoa ganha e pode contribuir.
Falando especificamente de pais e mães, quero deixar claro que todo mundo tem o dever de alimentar os filhos/as. Nenhum dos dois é exclusivamente responsável por isso, e cada um contribui com o que pode.
É interessante que hoje, considerando a uberização do trabalho e a intensificação de formas de trabalho autônomas, provar o quanto uma pessoa ganha tem sido mais difícil e tem exigido soluções criativas, como, por exemplo, verificar ganhos nos aplicativos e pesquisar redes sociais. Assim, consegue-se chegar a um valor mais próximo da realidade.
Mas o fato de pagar alimentos não significa que está tudo bem e resolvido.
Ser pai ou mãe é bem mais que isso. Esta ilustração da Revista Azmina é uma excelente forma de explicar:
Por outro lado, deixar de pagar pensão não impede que haja a convivência e o contato entre pais, mães e filhos/as. Olhem de novo para a figura acima: alimentos é uma parte do que é ser pai e mãe, mas não é o todo, nem é a condição para continuar cumprindo seu papel como pai ou mãe.
Agora, por que é tão normal acharmos que o pai tem o dever de pagar alimentos?
A razão é a mesma pela qual ainda se acredita que a mulher tem a guarda dos filhos/as: à mulher cabe o cuidado, ao homem cabe o papel de ser o provedor. E, mesmo fora de situações de casamento e união estável (gente, lembrando que as pessoas podem ter filhos em conjunto sem nunca terem sido ou terem desejo de estar num relacionamento afetivo) esses papeis do masculino e feminino permanecem. Mas a verdade é que pai e mãe podem ser exigidos a pagar alimentos, simplesmente porque essa é uma obrigação determinada por lei em razão da qualidade de pai ou mãe.
De qualquer forma, acredito que a explicação acima deixa bem clara divisão de papeis na sociedade, mas principalmente como a mulher ganha muito mais atribuições do que o homem, numa relação desigual: a mulher fica com todo o cuidado e toda a responsabilidade pelos/as filhos/as, o homem fica apenas com o dever de pagar.
Como podemos começar a mudar isso?
Refletindo, estudando, criticando, mudando as formas de agir. Só sugiro ir além do debate estrito do feminismo e dar uma passadinha nos temas de masculinidade para entender como o homem constrói a sua individualidade no mundo, e que esse tema é também importante para relações familiares mais saudáveis.
Por ora, fico por aqui. E no próximo post falamos dos alimentos devidos à mulher por conta de casamento e união estável.