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Esperanças

27 de novembro de 2019

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Esperanças

Era manhã de 06 de setembro quando ela nasceu, assim, meio que de repente. O parto estava marcado para alguns dias a frente, mas, “a menina se apressou”, dizia sua avó.

Por ter nascido no dia 06 de setembro, ganhou o nome de Esperança e sempre ouviu dos parentes que era o nome de alguém muito importante. Curioso que nunca lhe contaram na escola de quem herdara o nome.

Foi numa das reuniões dos movimentos negros da Faculdade de Direito que soube, finalmente, de quem herdara parte da identidade: Esperança Garcia, escrava, negra, que havia escrito uma carta ao governador da província reclamando das violências que sofria do escravizador e primeira mulher negra reconhecida como advogada, em 2017, pela OAB-PI.

Escrava que escrevia carta

Sem dúvida, uma revolucionária nos idos de 1770, porque a taxa de alfabetização no país era ínfima, restrita a uma pequena elite. Mas ela, mulher e negra, sabia ler e escrever e isso tinha um significado.

Decidiu buscar informações sobre Esperança, que agora já se tornara sua inspiração, mas pouco encontrou. De acordo com estudos literários sobre Esperança Garcia, se deu conta que a experiência feminina de escravidão e letramento não eram suficientes para superar o modelo colonial patriarcal e conquistar espaço na construção da história.

Apesar disso, não pode deixar de pensar nas violências experimentadas por Esperança: não se sabe sua história, se nasceu no Brasil ou se foi trazida, escravizada. De qualquer forma, nunca teve liberdade de ser. Foi separada de sua família por diversas vezes, ao menos uma, quando nasceu e outra quando foi aprisionada e encaminhada para a fazenda onde serviria como escrava. Foi fisicamente violentada em castigos físicos e não se sabem as violências sexuais e psicológicas que sofreu.

Nada disso sem registro. Nenhumas dessas experiências dignas de relevância naquela sociedade.

Comparou então com a sua vida: não era escrava, não havia se submetido às mesmas violências que Esperança havia passado. Mas não tinha a menor dúvida de que não era livre e que era vítima de violências. Se liberdade fosse definida em termos liberais, talvez pudesse se considerar livre. Afinal, pode pegar o transporte público até a faculdade e escolher para qual patrão vai vender sua força de trabalho; e a cerveja do final de semana. Mas não é livre no sentido de realizar escolhas sem julgamentos sociais: seu cabelo afro é questionado, seu corpo negro, sexualizado, sua cor retinta, discriminada. E isso sem falar nas vezes em que teve que responder que “sim, eu estudo nessa faculdade” porque nunca acham que ela pertence àquele lugar. Essa verdadeira liberdade, ela não tem.

Essa falta de liberdade se reflete nas violências que sofre. Talvez as mais significativas sejam a constante vigilância que sofre ao entrar num mercado ou numa loja de roupas e perceber que tem um sistema de vigilância que a segue. Pode ser uma pessoa ou pode ser eletrônico, mas a suspeita de que ela vai cometer um crime é sempre uma expectativa possível.

É uma vida de escolhas limitadas e de medo. Uma vida de desigualdades.

Medo que Esperança Garcia enfrentou no momento em que escreveu aquela carta relatando o que vivia. E sobre o que não se sabe bem o que aconteceu depois. Preferiu acreditar que Esperança tinha alguma mínima rede de apoio, como o seu marido ou as outras negras escravizadas e foi isso que lhe deu forças para agir.

A ideia de redes de apoio fez a nossa Esperança, essa, dos nossos tempos, perceber a importância do resgate da ancestralidade na resistência das pessoas negras. Mas, decidiu que é preciso superar o lugar de vítima que pessoas negras são colocadas, quando não há lugar-nenhum.

A resistência vai além da reconstrução histórica das violências que os negros sofreram.

Isso a ajudou a entender as aulas de Filosofia do Direito, História do Direito, Teoria da Justiça e Criminologia, quando os professores e as professoras muito claramente defendiam políticas de combate ao racismo como parte estrutural da sociedade, como, por exemplo, a criminalização do racismo, como também instrumentos jurídicos de inclusão, como as políticas afirmativas, tais como cotas. Até os debates sobre colonialismo e decolonialidade ficaram mais fáceis de serem entendidos quando ela percebeu que debater cor e raça é um debate sobre estruturas político-sociais-econômicas que até hoje fazem parte do país e que devem ser faladas.

Ao mesmo tempo, se chocou o quanto o direito civil é excludente e pensou imediatamente na lei de terras de 1850 que proibiu a ocupação de terras “sem dono” no Brasil. Essa lei estava ali, nas discussões que antecederam a abolição formal da escravidão e se destinava a proibir negros de terem terra, que significa, nada além do que ter direito à moradia.

O mais curioso é que as inspirações revolucionárias que chegavam ao país eram inspiradas nas revoluções liberais dos EUA e da França, ambas que formalmente eliminaram a diferença de classe. Mas por aqui, tal como em outros países da América colonizada, a realidade de servidão e de apropriação do valor das pessoas negras acabou prevalecendo, em clara contradição à premissa básica da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789 de que “todos nascem livres e iguais”.

Chegou a uma conclusão: mudar, alguma coisa mudou. Mas enquanto as estruturas não forem profundamente alteradas, corpos negros ainda serão coisas ou espectros do invisível, tal como nos diz

Esperança se nutriu de esperança, graças a Esperança.

Obs: Texto dedicado ao mês da Consciência Negra e à campanha #ativismonaweb. E um agradecimento especial a Alonso Goulart, que me orientou sobre Esperança Garcia.

Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.