Guarda e alimentos no isolamento: desafios de gênero
Aproveitando esses dias de confinamento para consumir mais podcasts e programas em outras redes sociais, ouvi uma frase que “o direito não serve para nada…”
Essa frase reflete meu sentimento depois de 1 semana que participei de pelo menos umas 3 reuniões para conversar sobre alimentos e guarda durante o confinamento que precisamos seguir por conta da disseminação do Covid-19 e nas quais tive contato com inúmeras opiniões distintas e debates intensos.
Vou tentar resumir as opiniões e expressar as minhas. Mas adianto que existem 2 pontos que, de alguma forma, aparecem nos debates: o primeiro deles, como a opressão feminina torna-se mais visível. O segundo deles, a possibilidade de outras vulnerabilidades, como renda e raça, aparecerem, mas também a facilidade de serem deixados de lado.
Prisão de devedor de alimentos em tempos de pandemia
Sobre alimentos. A principal discussão sobre o dever de pagar alimentos é sobre a prisão do devedor, uma medida permitida pelo direito brasileiro para tentar coagir o devedor de alimentos a pagar sua dívida. Aqui o problema é que a prisão é cumprida em unidade prisional, embora em local separado de outros presos criminais, mas, ainda assim, prisão. Como se sabe, prisões são locais com maior potencial de disseminação do vírus em razão das suas condições físicas precárias e esse risco afeta os presos, os funcionários que trabalham nas prisões e seus familiares.
Não a toa, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu a Recomendação 62 que propõe a mudança para a prisão domiciliar, inclusive para os devedores de alimentos. Apesar de ser comum a opinião de que essa mudança não é tão efetiva quanto a prisão tradicional, ela está sendo aceita porque parece ser a melhor alternativa diante de um cenário de calamidade tão novo e diferente.
Redução da pensão por causa da pandemia
Uma segunda discussão sobre alimentos tem sido sobre a redução dos alimentos pela perda de emprego ou renda durante a pandemia. Aqui os debates são mais acalorados. Já encontrei entendimentos favoráveis a uma presunção de redução das pensões com ou sem participação do Judiciário, presunção de necessidade de se suspender parte dos valores de alimentos, ou, ainda, que cada caso seja avaliado individualmente em processos judiciais.
Eu adoto a 3ª opinião, pois considero que cerca de 60% das guardas são ainda atribuídas exclusivamente às mulheres, o que me permite deduzir que são elas que recebem, em favor dos filhos e filhas, esses alimentos. Ou seja, presumir que existe redução de renda e permitir essa presunção de que os alimentos devem ser reduzidos acaba prejudicando a mulher que exerce o cuidado com os filhos. Aliás, com mais tempo em casa, os gastos para esses cuidados aumentam ao invés de diminuir.
Em relação a guarda de filhos e filhas o debate de gênero é ainda mais evidente.
Novamente, cerca de 60% das guardas são atribuídas a mulheres. Durante o isolamento isso significa assumir em tempo integral o cuidado com os filhos e filhas mais o trabalho doméstico, eventual cuidado com os próprios pais ou outros parentes (o cuidado feminino na família) e o trabalho não doméstico. Ocorre, sem dúvida, a sobrecarga feminina no exercício do cuidado dos filhos.
Qual seria a solução? Há quem defenda manter essa situação exatamente da forma como apresentei no parágrafo anterior, o que entendo como agravamento à discriminação de gênero.
Eu me coloco contra esse entendimento. Na verdade, penso que em primeiro lugar deve-se observar o interesse e desejo da criança e do adolescente que está sob a guarda e com base nisso pensar se é possível dividir a responsabilidade com os filhos sem o agravamento severo dos riscos a todas as pessoas envolvidas.
A título de exemplo, na França e na Itália a circulação no confinamento teve como uma das exceções permitir o exercício da guarda de crianças, o que me parece que está de acordo com o direito das crianças e um equilíbrio entre os pais e mães.
Nesse caminho, uma proposta interessante que tem surgido é o de compartilhar o cuidado com as crianças em períodos fixos (1 semana ou 15 dias, alternando) entre os pais e mães, que, nos seus respectivos períodos, ficam responsáveis pela educação, saúde e demais cuidados diários da criança bem como por garantir a convivência virtualmente (telefone, whatsapp, facetime, zoom etc) com o outro pai ou mãe e demais parentes.
Para mostrar a extensão do debate e a dificuldade de consenso, finalizo com um link com vários artigos sobre esses debates: http://www.ibdfam.org.br/noticias/7205.