Colunas Para entender o feminismo

Não é você, sou eu

12 de junho de 2020

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Não é você, sou eu

Uma carta de amor para o dia dos namorados

Querido ex, desde o nosso término estou pensando na justificativa que você me apresentou. A frase “não é você, sou eu” seguida de “você é muita areia para seu caminhãozinho” me colocou pra pensar em que tipo de mulher você quer em um relacionamento.

Eu sempre fui uma mulher de opiniões: algumas sinceras, outras diretas, outras construídas pela minha criação, outras desconstruídas pelo meu estudo e vivência. E, de fato, não sou eu… é você…

É você que não aceita que eu fale que você está sendo machista, que foi ignorante com sua irmã, que você se deu mal porque não confia em você, que sua chefe não é uma vadia porque ela cobra resultado.

É você que não aceita que eu me destaque em um debate na mesa do bar na frente dos seus amigos, enquanto você claramente não tem razão ou quando tem, seu argumento está fraco porque precisa estudar um pouco mais.

É você que não dá o braço a torcer, acha difícil competir com uma mulher que seja inteligente, que cozinhe melhor, tenha um emprego mais interessante ou um diploma a mais.  Inclusive também é você, que me pediu dinheiro emprestado e nunca pagou, enquanto está com um carro novo e dívidas absurdas.

É você que quer uma mulher que te ame independente dos seus defeitos, que fique calada nas “horas certas” (isso existe?), que cuide dos seus filhos enquanto você sai pra jogar bola no fim de semana e voltar bêbado.

É você que deixou sua mãe me amar e falar bem de mim, porque ela reconheceu o quão legal poderia ser o nosso relacionamento e me ter por perto, mas você quer ela só pra você né… assim como aquela sua melhor amiga, com quem eu não posso falar.

Também é você que afasta todas as minhas amigas e amigos com alguns comentários, com o famoso “elas ou eu”, pra que eu não tenha ninguém pra recorrer quando você fizer alguma merda e às vezes até checar meu celular escondido para confirmar se eu mantenho um combinado que, na verdade, é só seu.

Não tenho dúvidas mais, a culpa do fim desse relacionamento é sua. Mas por que eu estava me sentindo mal, culpada, achando que era insuficiente?

E quando eu penso naquela areia toda para seu caminhãozinho… eu penso que ao invés de fugir da entrega você poderia comprar um utilitário maior. Você podia, sabe? Eu até poderia abrir mão de um pouco de areia para caber nesse seu caminhão, mas eu to cansada.

Eu já me cansei de preparar uma surpresa bacana e você dizer que ficou legal e só isso, como se fosse minha obrigação.

Eu cansei de nunca ouvir um obrigado pelo meu esforço de aturar algum familiar babaca seu, que dá em cima de mim pelas suas costas e você sabe (porque eu disse e você não fez nada). Do seu pai estúpido, que muitas vezes se parece com você, especialmente nos defeitos e no machismo que você pratica.

Eu cansei da sua roda de amigos machistas que fazem comentários sobre mim ou sobre minhas amigas de modo fútil e desumano, como se a gente só servisse pra transar.

Eu já me cansei de ter que fazer menos, ou mostrar menos, pra parecer menor que você. Pra não deixar você perder seu brilho. Eu cansei de te exaltar mesmo sabendo que você não é nada disso.

Eu já cansei de assistir filmes que eu não quero, praticar esportes que não me interessam, de ir sempre no mesmo restaurante e viajar para o mesmo lugar (e às vezes com as mesmas pessoas).

Eu cansei de passar noites em claro colocando meu home office em dia porque você não dedicou nenhum minuto do seu dia pro nosso filho ou pras atividades da casa.

Eu cansei de acreditar em um relacionamento que não dá certo, porque só uma pessoa cede e a outra tem que fazer tudo, ainda mais quando a família e a sociedade dão mais crédito a isso só pelo fato de eu ser mulher.

Eu estou cansada de ser tachada como louca, só porque estou cansada dessa relação desigual. Estou cansada de ser tachada como medrosa porque não consigo te largar. Estou cansada de julgamentos constantes, por motivos que eu nem mesma sei, mas sei que vieram das suas reclamações para o mundo.

Eu poderia jogar a areia fora pra caber no seu caminhãozinho, mas eu não posso mais. Porque descobri que além de muita areia, minha areia é pesada. O nome dela é autoestima, e eu não vou abrir mão de mais nenhum grão.

Este post de dia dos namorados é dedicado a todas as amigas e conhecidas que já ouviram essa frase, tiveram um relacionamento abusivo (hétero ou homoafetivo), clientes de divórcio e/ou violência doméstica, mulheres que escutam o Olhares que já tiveram um embuste na vida.

Que a vida seja mais leve, sem abrir mão de nenhum grão de areia só pra dizer que você tem um relacionamento.

Feliz dia do amor próprio!

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Apresentadora e produtora do Olhares Podcast, é também mestranda em Direitos Humanos, pesquisadora e consultora em gênero e diversidade, palestrante e advogada.