Colunas Mulheres e o Direito

Precisamos falar sobre união estável – Parte 01

1 de julho de 2020

author:

Array

Precisamos falar sobre união estável – Parte 01

Esse texto dá início a uma pequena série em que abordaremos o tema união estável, seu conceito, origens, relações com gênero e efeitos. O objetivo é simultaneamente esclarecer e superar mitos sobre união estável e casamento.

06:00 da manhã de segunda-feira. Sim, dessa última segunda-feira, dia 29 de junho. Abri os olhos e, ainda com muita preguiça só ao pensar em levantar, passo a mão na mesa que fica ao lado da cama e pego o celular. Eu detesto esse meu hábito e já fiz algumas tentativas para mudar, mas acabo repetindo esse mesmo comportamento por dias até que chego num limite e paro novamente e depois, tudo recomeça.

Bem, eram 06 horas da manhã do dia 29 de junho quando peguei o celular logo depois de acordar e vi uma mensagem de Andrea, que trabalha como manicure, me pedindo uma ajuda. A mensagem era mais ou menos assim:

Baixei o documento que ela havia mandado junto e era uma declaração assinada por ela e por Paulo declarando que eles viviam “como se casados fossem” há mais de 08 anos e com cabeçalho direcionado a uma empresa de plano de saúde. Tinham outras 02 pessoas assinando como testemunhas e todas as assinaturas estavam reconhecidas em cartório.

Respondi por áudio, imaginem a voz ainda mais ou menos, dizendo: “Oi. Quando se declara a união estável vale para tudo e não só pro plano de saúde. Não dá para dizer que existe para uma coisa e não para outra.”

Logo depois ela me mandou um “Obrigada” e eu um emoticon mandando beijinhos para ela.

Fim da conversa. E o recomeço de uma reflexão que tenho há alguns anos por conta da experiência como professora de direito de família: por que as pessoas têm tantas dúvidas sobre o que é a união estável e quais as consequências?

E, você, sabe o que é união estável?

Pela lei união estável é uma entidade familiar entre homem e mulher, “configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Esse é o art. 1.723 do Código Civil e que repete o art. 226, § 3º, da Constituição de 1988. Mas é bem possível que isso não ajude muito a entender.

Bem, até 1988 a única família reconhecida como dessa forma era a que tinha origem no casamento. E, casamento, desde 1890, tinha que ser celebrado perante uma autoridade civil, o juiz de paz, após a apresentação de documentos que comprovassem a possibilidade de 02 pessoas casarem entre si, no que chamamos até hoje de habilitação para o casamento.

É bem possível que vocês imaginem que nem todo mundo casava “no papel”. Imaginem como era o país desde 1890: quantos cartórios vocês acham que existiam, pensem nos deslocamentos até o cartório e nas despesas para pagar pelo casamento (e não estou falando da festa, mas sim do quanto se gasta para pagar certidões e tudo mais que envolve casar). Hoje, boa parte dessas dificuldades foram superadas e é bem mais fácil para a maior parte da população ter acesso a cartórios e faz alguns anos que é possível conseguir gratuidade nas despesas para o casamento.

Ainda assim, por conta dessas dificuldades de acesso a direitos e outros fatores como discriminação no casamento inter-racial no Brasil, o “juntar os trapos” se tornou uma forma normal de constituir família no país.

Embora essas uniões existam desde o processo de colonização europeia e algumas leis já tratassem de parte dos efeitos dessas uniões, como, por exemplo, indenização por morte em acidentes em estradas de ferro e pensão por morte previdenciária, apenas com a Constituição de 1988 a união estável se tornou oficialmente reconhecida como família. E passamos a compreender a união estável como a união de 02 pessoas que, mesmo sem estarem oficialmente casadas, têm o objetivo comum de formar uma família entre elas.

União estável tem a ver com os movimentos feministas?

Um ponto importante e geralmente esquecido nos dias de hoje é que o reconhecimento oficial da união estável na Constituição teve por objetivo a proteção de mulheres.

Vejam só: sem o status de família, não teria sido possível dar direitos à alimentos, divisão de bens (regime de bens) nem herança a quaisquer das pessoas em união estável. Mas, as principais prejudicadas por essa omissão seriam as mulheres que estivessem nessa situação, especialmente quando consideramos que até o início da década de 1980 havia uma dependência e dominação feminina no âmbito doméstico muito superior ao que hoje ainda encontramos.

Há casos antigos julgados pelos Tribunais, anteriores ao reconhecimento da união estável como família, em que a mulher, restrita ao trabalho doméstico da casa, do companheiro e dos filhos, não tinha direito a absolutamente nada com o término da relação, nem mesmo a alimentos, o que a levava a situação de vulnerabilidade extrema.

Portanto, o reconhecimento oficial da união estável como família faz parte dos movimentos feministas e buscou, de alguma forma, construir novas formas de conferir direitos para as mulheres.

União estável apenas entre homens e mulheres?

Embora pensada inicialmente como proteção para a mulher e em uma relação entre homens e mulheres, esse conceito restrito de família formada por pessoas de sexos diferentes já está superada.

Em 2011, o STF julgou 02 ações – ADI 4277 e ADF 132 – em que se reconheceu que o Brasil não pode proibir a existência de famílias formadas por pessoas de mesmo sexo porque isso violaria o direito fundamental à liberdade, em especial à liberdade de determinação da orientação sexual. Assim, reconheceu como família as uniões de pessoas de mesmo sexo que tenham por objetivo formar família e chamou a elas também de união estável.

Esses julgamentos são um marco nos debates sobre gênero, e vou retornar a eles em um próximo texto.

O que significa viver em união estável?

As principais dificuldades hoje sobre união estável já não são sobre ela ser reconhecida como família ou poder ter pessoas de mesmo sexo ou de sexos diferentes.

Na minha experiência profissional, as dúvidas que se repetem são como ela se inicia, como se prova a união estável e quais os efeitos dela.

O início da união estável é realmente complexo, porque estamos diante de uma relação que em algum momento as pessoas transformam com o objetivo de formar uma família. A questão é que esse momento nem sempre é muito claro: pode ser na compra de um imóvel, em organizar as finanças e as contas bancárias juntos, em adotar um animal de estimação, ter filhos, colocar um ao outro como dependentes no seguro de vida ou no plano de saúde. Tudo isso pode significar uma união estável, mas também pode não ser.

Papeis, documentos ou declarações ajudam a tentarmos descobrir se essas pessoas querem construir uma família juntas, mas estas declarações por si não substituem experiências cotidianas de quererem publicamente uma família. E é nisso que nós, profissionais do Direito, nos apegamos para dizer se uma relação é ou não uma união estável.

A existência de um documento é, inclusive, uma das grandes diferenças entre o casamento e a união estável: o casamento é solene, tem vários requisitos para serem cumpridos e se prova pela certidão de casamento. A união estável, não, ela existe pela repetição contínua, pública e duradoura de uma vontade de ter uma família com outra pessoa ou, dito de outra forma, por exercer em atos do dia-a-dia o que entendemos socialmente como família. Por isso que papeis ajudam, mas não provam-sem-a-menor-sombra-de-dúvidas que existe ou não uma união estável.

Já tem bastante coisa para pensar nesse texto. Deixo para os próximos falar mais sobre efeitos, direitos que surgem na união estável e também mais detalhadamente sobre união estável e casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Até.

Array

Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.