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Salário maternidade e contribuição previdenciária: a decisão do STF é boa para mulheres empregadas?

12 de agosto de 2020

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Salário maternidade e contribuição previdenciária: a decisão do STF é boa para mulheres empregadas?

No texto dessa semana, eu analiso a recente decisão do STF no RE 576967 que impossibilitou a cobrança de contribuição previdenciária sobre salário maternidade e se essa decisão é um avanço na proteção da mulher no trabalho.

No que parece longínquo mês de novembro de 2019, Aline Hack me manda um link de uma notícia do STF com o título “Iniciado julgamento sobre incidência de contribuição previdenciária sobre salário-maternidade” e conversamos sobre a possibilidade desse julgamento representar avanço em direitos trabalhistas e de previdência em favor das mulheres.

Em 04 de agosto de 2020, o STF terminou esse julgamento, que era o recurso extraordinário 576967, para declarar a inconstitucionalidade da incidência de contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade prevista no art. 28, § 2º e 9º (parte final, alínea “a”), da Lei n. 8.212/1991. O tribunal também fixou uma tese, isto é, um argumento ou precedente judicial que deverá ser seguido nas decisões de outros julgadores e que diz o seguinte: “é inconstitucional a incidência da contribuição previdenciária a cargo do empregador sobre o salário maternidade”.

Essa decisão pode ser considerada um avanço na proteção às mulheres no mercado de trabalho?

Sobre o processo no STF e seus antecedentes

O recurso extraordinário 576967 tem origem em um mandado de segurança de 2006 na 3ª Vara Federal de Curitiba (processo n. 0019937-86.2006.4.04.7000) impetrado pelo Hospital Vita Batel S.A. Esse processo teve sentença em janeiro de 2007, contrário aos interesses do Hospital, e em maio do mesmo ano o TRF da 4ª Região julgou o recurso de apelação da empresa, mas manteve a conclusão do juiz.

O que pretendia o Hospital Vital Batel S.A e que não foi atendido pelo juiz e pelos desembargadores federais? O pedido era de não pagamento de contribuição previdenciária sobre os salários de suas funcionárias em licença maternidade, e o direito de ter o reembolso dos valores já pagos. A justificativa para esse pedido era que o salário maternidade, pago às empregadas em licença maternidade, não seria exatamente salário o que não permite a cobrança desse tipo de tributo.

Esse argumento que foi recusado pela justiça federal, foi aceito no STF, que, então, reverteu os julgamentos anteriores e deu razão (“ganho de causa”, no popular) para o Hospital Vital Batel.

Para que serve a contribuição previdenciária e quem paga?

Para entendermos melhor esse argumento do Hospital, é importante sabermos como funciona a Previdência Social no Brasil, mas no sentido de onde vem o dinheiro para manter a previdência social. Aqui vou me restringir à previdência geral, que chamamos de Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e que é administrado pelo INSS. Existe também o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), dos servidores públicos. Contudo, a decisão que estou comentando foi adotada em relação ao RGPS e por isso, vou me restringir a ele.

O RGPS é o sistema de previdência público que, a grosso modo, funciona como um seguro para certos riscos que o país entende necessário dar apoio à população. Deixo aqui uma tabela com os riscos e como eles são resguardados:

RiscoBenefício ou proteção
Incapacidade por idadeAposentadoria por idade
Incapacidade laborativa temporáriaAuxílio-saúde
Incapacidade laborativa definitivaAposentadoria por incapacidade
DesempregoAuxílio desemprego
MortePensão por morte
PrisãoAuxílio reclusão

Cada um desses riscos e benefícios tem requisitos próprios, como tempo que a pessoa tem que estar vinculada ao INSS, tempo de serviço, trabalho ou contribuição e até mesmo quem pode receber.

Mas, para que exista esse sistema de cobertura público, é necessário dinheiro. E aqui entramos no que se chama de financiamento da seguridade social (que abrange a previdência social e a assistência social).

As regras de financiamento da seguridade estão no art. 195 da Constituição, e o mais importante é que são 3 pilares: os trabalhadores contribuem, as empresas contribuem e o Estado brasileiro (União, Estados, Municípios e DF) contribuem. Vocês já imaginam que nos últimos anos têm aumentado o ônus dos trabalhadores e diminuído os das empresas né?!?

Os empregados em geral, contribuintes do INSS, pagam essa contribuição com um percentual sobre o seu salário. Sabe aquele desconto no contracheque (quem tem emprego formal) em que está escrito INSS? Então, essa é a sua contribuição para o INSS. Ela varia de 7,5% a 14% dependendo do salário.

Só trabalhadores formais contribuem?

Quem tem emprego informal também contribui, viu! Porque é vinculado ao INSS todo mundo que exerce algum trabalho, mesmo que o informal. Aqui nesse link tem mais informações.

Bem, e as empresas? Existem 3 grupos de contribuições que empresas pagam e que de alguma forma financiam a seguridade: contribuições sobre a folha de pagamento, contribuições sobre o faturamento ou receita bruta (PIS/COFINS: olha aí a discussão sobre reforma tributária) e contribuição sobre o lucro (CSLL).

O tema central do julgamento no STF recaiu exatamente sobre a contribuição sobre a folha de pagamento….

Ah, antes de prosseguir, quero fechar a parte de financiamento: o papel do Estado seria o de complementação do terço faltante desse tripé de financiamento da seguridade.

Voltando à contribuição sobre a folha de pagamento: o art. 195, I, da Constituição diz essa contribuição é calculada sobre “a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe [à empresa] preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício”. Ou seja, incide contribuição, paga pela empresa, em todo trabalho ou por todo o serviço que ela recebe e, assim, ela remunera.

A condição para essa contribuição, sobre a folha de pagamentos, é que haja serviço e um salário que corresponda ao serviço prestado.

Então, a pergunta é: salário maternidade é salário nesse sentido aí?

O que é o salário maternidade?

Salário maternidade é um benefício da previdência social pago às mulheres seguradas do INSS por 120 dias, a partir do parto ou 28 dias antes dele (art. 71 da Lei n. 8.213/1991). Para saber mais, recomendo muito esse resumo da Não me Kahlo, que fala também sobre como as mulheres podem pedir o benefício.

O salário maternidade acompanha, assim, a licença maternidade.

A licença maternidade foi instituída pela CLT em 1943 e era de responsabilidade do empregador. Com o tempo, percebeu-se que atribuir ao empregador a responsabilidade pelo custeio da licença acabava tornando o acesso das mulheres ao trabalho mais difícil, e uma série de reformas foram trazendo a licença e o salário maternidade para a previdência social, portanto, sob a responsabilidade pública. Inclusive, um dos julgamentos que deixa bem clara essa mudança foi um julgamento do STF de 2003 da ADI 1946, no qual os Ministros entenderam que o salário-maternidade não está limitado ao teto dos benefícios do INSS, devendo ser pago pelo valor do salário da empregada.

Essa incorporação do salário maternidade como benefício e proteção públicos retira dele o caráter de salário no sentido que conhecemos, isto é, de estar relacionado a um serviço ou trabalho realizado.

Além disso, o salário maternidade é pago durante uma licença maternidade, em que a empregada está afastada das suas funções, ou seja, não há trabalho.

Com a junção de todas essas ideias e informações, o STF entendeu que o salário maternidade não é salário e, por isso, não está ali na hipótese do art. 195, I, da Constituição. Portanto, não pode incidir contribuição previdenciária sobre ele.

Essa decisão é um avanço na proteção dos direitos da mulher?

Minha resposta é: não!

Em primeiro lugar, porque os debates do caso não tiveram por base os direitos das mulheres e o aumento de sua proteção no trabalho. Todos os julgamentos até o STF analisaram de forma bem restrita o sentido de “salário” e “salário maternidade” para fins de incidência da contribuição.

Em segundo lugar, porque do ponto de vista econômico, ela retira verbas do custeio da previdência social.

Em terceiro lugar, porque a decisão só se aplica a empresas. Ou seja, só empresas deixaram de recolher contribuição previdenciária sobre o salário maternidade.

As mulheres empregadas e que recebem o salário maternidade, continuaram a recolher. Isso vai acontecer porque a decisão do STF analisou o art. 195, I, da Constituição, que trata da contribuição da empresa, ao passo que a contribuição dos empregados está no art. 195, II, e que permite a cobrança de qualquer valor recebido pela empregada.

E, por fim, em quarto lugar, porque essa dispensa de pagamento não vai ser revertida na criação de novas vagas de trabalho, mas sim para aumento do lucro, tal como já ocorreu no passado quando houve redução de tributos e explicado por Laura Carvalho no livro “Valsa Brasileira”.

Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.