Colunas Mulheres e o Direito

Um (pequeno) passo a frente na luta feminista

14 de outubro de 2020

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Um (pequeno) passo a frente na luta feminista

Diante de tantas situações de violações de direitos humanos no país, uma decisão da justiça do RJ que permitiu mudança de nome e gênero de uma pessoa não-binária nos faz acreditar que a luta tem resultados. Nesse texto eu tento explicar o porquê dessa decisão ser uma novidade no Direito e porque deve ser comemorada (e repetida)

Há poucas semanas foi divulgada em diversos sites e mídias a notícia de que uma decisão inédita do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) havia autorizado a mudança de gênero nos registros de uma pessoa para “não binária”.

As notícias contavam que Aoi Berriel havia procurado a Defensoria Pública para iniciar os procedimentos para alteração de seu nome, quando então descobriu que podia também realizar a alteração de gênero e escolheu não estar mais associada aos gêneros femininos e masculinos. Nas suas palavras, transcritas na reportagem publicada em O Globo, ela se sentia pressionada a vida inteira a ter uma masculinidade com a qual não se identificava.

Tudo demorou bastante: o processo começou em 2015 e só em setembro de 2020 teve uma decisão favorável.

Mas a decisão em favor de Aoi abre um caminho importante em dar visibilidade a outras lutas de pessoas transgêneras e não-binárias.

Direito e gênero

As nossas leis usam palavras que tratam do gênero feminino e masculino. Isso está na Constituição, no art. 5º, inciso I, onde está escrito “homens e mulheres”, como também está na Lei Maria da Penha ao usar a palavra “mulher”, como em todas as outras leis hoje existentes.

Existem 02 razões principais para que isso aconteça: a primeira, é que o Direito foi mesmo pensado para refletir o padrão dito como “normal” e por isso, se preocupar em usar apenas as palavras mulher/feminino e homem/masculino. A segunda razão é a língua portuguesa, que usa o masculino como “neutro” e coloca como oposto o feminino. Sobre esse segundo argumento, vale a pena ouvir o ep. 48 do Olhares Podcast com a Jana Viscardi e Jana Bianchi sobre escrita e linguagem feminista.

Tanto no Direito como na língua portuguesa, as mudanças estão vindo, mesmo que as mudanças não estejam acontecendo na velocidade que deveria ser.

Um pouco do passado

Em 1997, há 13 anos atrás, Roberta Close foi impedida pelo STF de mudar seu nome e gênero, mas 04 anos depois, em 2001, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) permitiu a mudança de nome e gênero de uma pessoa transexual e que havia realizado cirurgia de transgenitalização, nome que se dá à cirurgia de alteração dos órgãos sexuais físicos.

Ao longo dos anos, aumentaram as decisões que permitiram a mudança após a realização da cirurgia, mas, claro que vamos encontrar casos em que o conservadorismo prevaleceu. De qualquer forma, é seguro dizer que o tempo tornou certo o direito à alteração.

Uma mudança simbólica

Uma nova grande mudança aconteceria em 2018. Essa mudança nos tribunais já estava acontecendo, mas 2018 é uma data simbólica: nesse ano o mesmo STF que há 21 anos rejeitava o pedido de Roberta Close, agora autorizava a mudança de nome e gênero sem a necessidade de realização da cirurgia.

Essa decisão foi bem técnica e jurídica, destacando o direito das pessoas em serem felizes e viverem sem constrangimentos. De forma inconsciente ou implícita, o que o STF fez foi reconhecer que gênero e sexo são diferentes, e que os órgãos sexuais não podem determinar em que gênero a pessoa se vê.

Em apenas 02 anos estamos vendo uma nova transformação e, usando os argumentos de 2018 do STF, essa nova mudança vem também defender a dignidade da pessoa humana e o direito a ser reconhecida. Agora, deixa-se de lado o debate sobre gênero e se aceita que as pessoas podem não se identificar com nenhum dos gêneros masculino ou feminino e nem por isso serão menos pessoas ou de alguma forma devem ter menos direitos. Ao contrário, essa experiência é tão pessoal que o Direito tem a obrigação de acolher e resolver de uma forma que a respeite.

Rumo ao futuro

Dentre avanços e retrocessos, momentos mais fáceis e outros muito difíceis, acredito que estamos no caminho de progressiva inclusão e reconhecimento de pessoas ainda marginalizadas, como homossexuais, transgêneros, assexuadas e não-binárias.

A passos lentos e pequenos, se vai alcançando  “evolução pela luta diária”, escreveu minha amiga e colunista Fabris Martins.

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Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.