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Violência contra criança: quando a casa e a família são os agressores

6 de maio de 2020

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Violência contra criança: quando a casa e a família são os agressores

Em um momento em que o isolamento social constitui uma medida de saúde individual e coletiva, toda a preocupação parece se concentrar nas medidas de redução do contágio do vírus causador da Covid-19.

Embora essas medidas sanitárias sejam mesmo importantes, devemos chamar a atenção para possibilidade de aumento da violência praticada contra crianças e adolescentes.

De acordo com o Disque 100, programa do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para recebimento de notificações de casos de violações de direitos humanos, foram registradas 9.430 violações desde o início da Covid-19 até 05 de maio, das quais 1.905 tiveram como vítima pessoas idosas, crianças, pessoas com deficiência ou pessoa socialmente vulnerável. 336 dessas pessoas eram crianças.

Segundo análise do Ministério, dos dados de 2018, a maioria das vítimas é mulher e a violência é praticada por uma pessoa da família ou conhecido da criança. Essa conclusão também aparece no Boletim Epidemiológico n. 48, divulgado em junho de 2018, pelo Ministério da Saúde sobre violência sexual contra crianças. Nesse documento consta que 92,4% das vítimas de violência, de um total de 76.716, eram de crianças e adolescentes mulheres, submetidas a violências repetitivas em 1/3 dos casos.

O lar se torna o lugar do medo

Esses dois estudos públicos também informam que essas violências acontecem principalmente dentro de casa e, como já dissemos, os agressores costumam ser pessoas da família ou conhecidos. Ou seja, no espaço que consideramos como espaço de afeto, carinho, desenvolvimento, de formação de vínculos positivos, é, para todas essas crianças e adolescentes, um lugar que causa medo.

Crescer sob o medo constante de uma nova violência é um fator que prejudica o desenvolvimento infantil e pode provocar danos de efeitos prolongados. De acordo com informações da Sociedade Brasileira de Pediatria, o estresse tóxico, caracterizado por um nível alto de estresse ou em repetição, podem provocar piora no nível de inteligência da criança e aparecimento de transtornos comportamentais, como o transtorno de ansiedade e a depressão a médio prazo. No longo prazo, aumentam o risco de surgimento de transtornos psiquiátricos, doenças autoimunes e doenças crônicas como diabetes, hipertensão e AVC.

O diálogo é fundamental para detectar situações de violência

Uma das principais medidas de detecção das violências é o contato social, em que professores e professoras, familiares, médicos e médicas, amigos e amigas, vizinhos e vizinhas etc participam do cotidiano da criança e do adolescente e podem ouvi-las ou podem também perceber alterações físicas e comportamentais que demonstram a ocorrência das violações.

Sem a possibilidade de circular livremente no cenário atual, esse sistema multiportas de comunicação e visibilidade das violências contra a criança fica prejudicado, o que aumenta os riscos de que permaneçam acontecendo no silêncio da casa.

Como combater a violência

Para combater esse aumento da violência, a Unicef divulgou uma Nota Técnica detalhando medidas que devem ser adotadas para a proteção de crianças. Dentre elas, destacam-se a escuta e participação de crianças e adolescentes, capacitar profissionais da saúde, da educação e da segurança pública para um melhor atendimento de crianças e para terem possibilidade de identificar mais rapidamente sinais de violência, disponibilizar materiais informativos, assegurar meios substitutivos das aulas físicas que não podem ser realizadas, assegurar o acompanhamento à distância das crianças pelos professores e apoiar o desenvolvimento de mecanismos de denúncia e apresentação de sugestões seguros para crianças.

Uma medida que ainda não parece ter sido aplicada pelos governos é a criação de tecnologia com acessibilidade para a criança. Veja-se: ainda que o Disque 100 seja um serviço acessível por telefone, e-mail ou internet, esses canais não têm uma linguagem nem conteúdo adaptado ao nível de desenvolvimento infantil. Sendo elas as vítimas e tendo o direito de comunicar as violências que passam, como pessoas detentoras de direitos, deveriam ser construídas formas de comunicação que sejam mais facilmente entendidas e utilizadas pelas próprias crianças.

Outras medidas importantes

Encontramos na Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por acidentes e Violências uma outra medida consistente no atendimento por equipe intersetorial que assegure apoio médico, psicológico e social necessário, assegurando às mulheres vítimas, aumento da auto-estima e fortalecimento para identificar soluções em conjunto com a equipe.

O que você pode fazer

Mas, nós também podemos colaborar com a proteção da criança contra a violência, pois, de acordo com o art. 227 da Constituição, a responsabilidade pela proteção dos direitos da criança recai sobre o poder público, sobre a família e sobre a sociedade. Assim, cada um de nós deve denunciar quando tiver notícia de violências praticadas contra crianças. Pode ser violência física, verbal, sexual, de gênero ou trabalho infantil.

Toda violência contra criança e adolescente deve ser combatida.

E não, violência para “educar” continua sendo violência, assim como é violência contra a criança permitir que ela trabalhe “porque é melhor estar trabalhando do que com a cabeça vazia”.

Crianças e adolescentes devem ser protegidos de toda e qualquer forma de violência.

#disque100

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Doutora em Direito Civil, Professora de Direito Civil na FGV Direito Rio, Defensora Pública no RJ, Mulher negra, feminista, cisgênero.