Casamento e maternidade são mesmo uma opção da mulher?
No artigo dessa semana, a coluna Mulheres e Direito faz algumas reflexões sobre os julgamentos morais e legais que as mulheres são vítimas quando escolhem não casar ou não ter filhos.
O texto dessa semana não vai ser tanto sobre o Direito, se ele for entendido como sinônimo de leis e de Constituição. Não sei como vocês se sentem, mas desde março desse ano a minha vida parece ser uma montanha russa em que períodos de alegria e euforia são rapidamente substituídos por muita apreensão e medo.
As últimas semanas não foram nem eufóricas nem amedrontadoras. Na verdade, enquanto os dias pareciam acabar muito rápido, com pilhas de trabalhos a serem entregues e aulas para assistir, “entrei” num momento de autoavaliação em que basicamente a pergunta era “o que eu estou fazendo da minha vida?”
Essa pergunta tem uma razão para ter surgido na minha cabeça. No auge desse volume enorme de tarefas, meus colegas de trabalho me questionaram o porquê de eu me dedicar tanto profissionalmente e em que momento eu iria me dedicar assim à minha “vida pessoal”.
Nem sempre a pergunta corresponde às palavras que são ditas…
Eu demorei um tempo para realmente entender o que essas pessoas queriam dizer: a verdadeira pergunta era sobre se e quando eu teria um relacionamento afetivo-sexual e quando eu seria mãe. Aos 38 anos, já tendo estabilidade no serviço público e tendo terminado o doutorado, eu já tinha passado da hora de cuidar da minha vida.
No meu segundo texto aqui no Olhares, em maio de 2019, eu já havia colocado um trecho de uma conversa com (também) um colega de trabalho que era no mesmo sentido. Nesse artigo, eu abordei o casamento (ou a união estável) a partir do sentido de divisão sexual do trabalho e a importância do papel da mulher no exercício do cuidado em uma família. Essa é uma resposta em que acredito e as obras de Flavia Biroli são, por exemplo, bem explicativas sobre esse tema.
Mas 01 ano e meio depois, acho que aprendi que existem outras formas de abordar o tema e a pergunta que tem se repetido na minha cabeça é porque eu e tantas outras mulheres somos exigidas em estarmos num casamento ou união estável e exercemos a maternidade como forma de validação ou confirmação da nossa importância social. Usando a frase de Soujouner Truth, “eu não sou mulher?” porque não sou mãe nem esposa/companheira?
Vejam, aos 38 anos de idade, tenho 15 de serviço público, sendo 5 anos e 8 meses como Técnico Judiciário da Justiça Federal do RJ e 9 anos e 9 meses como defensora pública; terminei meu mestrado em 2012, o doutorado em 2020, fui por 2 anos professora substituta na FND/UFRJ e atualmente dou aula de direito civil na FGV Direito Rio. Acho que tenho uma boa vida profissional, construída com muito estudo e sacrifício, e da qual me orgulho demais.
Desde 2005 decidi não morar mais com a minha família e já aluguei 03 imóveis e fiz todas as mudanças, os consertos das casas, as compras do mês, as limpezas e etc. Eu saio com meus amigos e minhas amigas, viajo, estudo, trabalho, me relaciono afetivamente, vou ao cinema, teatro, bebo vinho e cerveja, amo livrarias e sebos (saudades, aliás desses lugares….).
Ou seja, eu tenho uma vida pessoal! Mas nada desse meu histórico parece ser importante para outras pessoas porque eu não sou casada nem sou mãe.
Sim, eu tenho minhas dificuldades emocionais nesses temas, que há anos eu busco debater em terapia, com alguns avanços. Só que me irrita a desconsideração de quem eu sou como mulher e as conquistas que fiz porque eu não realizei algumas das exigências que a sociedade me impõe.
Outras opiniões sobre o tema
Em uma conversa recente com amigas, via aplicativo, falamos sobre isso. Chegamos a uma conclusão comum e provisória que socialmente o papel da mulher é, ainda, ser mãe e esposa (ou esposa e mãe). A possibilidade de ter uma vida pública e uma imagem ou reputação a partir do seu trabalho não é realmente uma opção; ela seria uma concessão, uma pequena permissão, desde que os papeis principais que a mulher tem que cumprir não sejam esquecidos.
Onde o Direito entra nesse debate
Essa conversa me lembrou imediatamente que o Código Civil até 1962 só autorizava que as mulheres casadas praticassem atos da vida cotidiana com a autorização do marido, e a CLT só permitia a contratação de mulheres também com a aprovação do marido que, aliás, podia pedir a demissão da esposa se achasse que o trabalho dela prejudicasse o cuidado da família. Ah, e até 1962, o marido tinha o direito de ficar com o salário que a mulher recebesse pelo trabalho.
Apesar dessas leis não existirem mais com a aprovação do Estatuto da Mulher Casada (Lei n. 4.1.21/1962) e mais recentemente a igualdade de gêneros prevista na Constituição de 1988, ainda existe uma “lei informal” que segue sendo aplicada no dia-a-dia e para essa regra coletiva, ser mulher exige ser esposa e mãe. Só existe essa opção.
Bem, desde que comecei a aprender sobre feminisnos negros, de Lélia Gonzáles e Sueli Carneiro, de Angela Davis e Patricia Hill Collins, eu descobri que eu tenho o direito a ter opção e que eu tenho o direito a ter escolhas e a não ser julgada, diminuída nem ter minha história desconsiderada porque eu não cumpri certas exigências sociais.
Ser mulher, negra e feminista é resistir a essas opressões, aquelas que são explícitas e aquelas que são ocultas, discretas, e buscar construir uma sociedade em que de fato as pessoas tenham escolhas dos caminhos das suas vidas e sejam reconhecidas por isso.
Algumas dicas para quem quiser se aprofundar no assunto:
Sobre maternidade compulsória, deixo como dica:
- Podcast “Calma, Gente Horrível”, ep. 45: https://open.spotify.com/episode/5bOtd1qlRduggolcbMlgaC
- E o vídeo sobre “A liberdade de dizer não a maternidade” no canal do Conexão Feminista: https://www.youtube.com/watch?v=wiZNP9KpemU