Colunas Para entender o feminismo

Essa tal história não-feminista

25 de maio de 2020

author:

Array

Essa tal história não-feminista

Neste mês de maio, antes de falarmos de feminismo temos que falar de nossas mães e avós

Quando comecei a falar de feminismo na coluna aqui no Olhares trouxe para a discussão a importância de se valorizar as mulheres que vieram antes de nós. Quando olhamos para trás, a memória busca uma mulher que é sinal de força e perseverança, mas que por dentro é uma reunião de cacos colados a duras privações.

A construção das nossas memórias afasta a noção exata da dor ou do sofrimento para guardar algo bom e mais importante, algo que seja mais afável à lembrança e não provoque o trauma constante: mesmo que esse trauma venha de outra pessoa, a tendência é guarda-lo como um sentimento de aprendizagem, deletá-lo ou ressignificá-lo.

Esta discussão começou nas férias, entre mim e Elisa, após uma longa de conversa de telefone. Essa mesma conversa a mobilizou pois ela, que havia recentemente perdido o avô, também decidiu escrever sobre sua avó.

Dentro do nosso feminismo, falamos muito sobre a memória e sob qual perspectiva ela é criada. Memória de quem fomos e quem somos hoje, e muito provavelmente o que somos devemos às nossas mães, na maioria dos casos, porque eram elas que contavam a maior parte das histórias sobre o que conhecemos.

Algumas pessoas podem dizer que estou sendo leviana, mas precisamos considerar sim que a maior parte da população é educada por mães e avós sozinhas; falar de mães solo é falar sobre  a realidade que nós temos hoje no Brasil, inclusive já falamos sobre isso aqui no Olhares

IBGE apurou que estima-se que haja hoje mais de 12 milhões de mães solo no Brasil

Depois que me tornei feminista, passei a observar todas as relações sociais e afetivas existentes em minha família: quais mulheres sofriam muito com machismo de seus maridos, pais, irmãos e irmãs, qual o nível de desigualdade de gênero entre as filhas e filhos, contextos de preferência afetiva por sexo e diferenças de incentivo marcadas por gênero. As que sofriam ou sofreram de violência doméstica, o contexto que isso se apresentou, reação da família… tudo.

É inevitável, eu juro.

Foi nessa que percebi com mais clareza o contexto de minhas avós, e hoje eu vou falar sobre apenas uma delas.  Para contextualizar um pouco mais, recentemente eu viajei com uma dessas avós nas férias. Essa avó já é viúva e está com idade bem avançada. Avançada ao ponto de esquecer muitas coisas atuais e guardar apenas lembranças boas; ao ponto de estacionar sua memória em um momento passado e não criar mais nenhuma memória presente. Foi nessa viagem que eu pensei mais sobre o contexto que nós, seres humanos, temos de guardar mais as coisas boas e afastar as ruins, sem se esquecer delas.

Dentro do “momento contexto familiar feminista” me lembrei que, quando vivo, meu avô era um cara muito rígido e machista, no centro de todo poder de comando familiar, ao ponto de determinar profissões, impedir sonhos, impor regras e trazer muita frustração familiar. Mas ninguém se lembra desse avô assim. A forma como é lembrado é um senhor muito caridoso, humilde, amoroso (após muitos anos sendo uma pessoa difícil de lidar), honesto, dentre uma série de elogios que a masculinidade patriarcal preserva. Os defeitos ficaram num lugar muito longe e afastado das memórias que pessoas buscam preservar.

A pergunta é: por que ninguém lembra dos defeitos de um homem? Seria assim se fosse mulher?

E já que somos seres humanos, todos e todas temos uma série de qualidades e defeitos. Eu não vou negar nenhuma dessas qualidades, porque reconheço que ele era um cara admirável e fruto de um crescimento moral (especialmente na velhice), com quem aprendi muito e me fez guardar memórias boas também; a ele sou muito grata, mas sua história deixou marcas em muita gente.

Dentre os 10 dias que passei viajando ouvi várias histórias sobre a vida de minha avó. Ouvi mais histórias felizes que tristes dos 52 anos de relacionamento, e uma coisa chamou mais minha atenção: toda vez que minha avó falava de algo que não a agradou durante todos esses anos, ela corrigia: “mas ele era bom”; “mas ele era um bom pai”; “mas nunca faltou nada em casa” e ouvi uma frase que me marcou mais, “quando ele estava velho, me pediu desculpas por todas as grosserias”. Outro ponto que me marcou foi a ausência de opinião própria ou uma vida inteira seguida de “Fulano falava que…” “Fulano amava isso…” “Fulano sempre chamou a atenção pra isso…”, quando percebi que era uma forma da minha avó dizer que o meu avô tinha dito, pensado ou reagido a determinadas situações, que no fundo eram (ou poderiam ser) opiniões dela.

Quando descobri que ela manifestava algumas de suas próprias opiniões dentro dessa construção narrativa de que outra pessoa havia pensado sobre, a dúvida foi saber se assim fazia por vergonha, por não ter tido voz durante todo seu relacionamento ou na cisma de ser criticada que, no caso, sendo outra pessoa (já falecida) a dizer isso, a crítica se esvairia pela falta do debate.  Ouvi também histórias que os outros parentes tinham pra contar, que comprovaram que eu não estava alucinando nas minhas especulações.

É importante relembrar que assim como a vó da Elisa, após a morte de meu avô, a minha viveu a mesma realidade: por não ter tido chances de estudar e sua vida “girar” em torno da família, ela não sabia o que fazer com a liberdade. Além disso, havia a dificuldade em saber controlar e pagar contas por nunca ter tido controle financeiro da sua própria vida, “sem um homem para tensionar os aspectos emocionais e sentimentais da própria vida”.

Essa viagem me ensinou mais sobre mim mesma do que sobre minha avó, obviamente. A maior lição foi aprender a não julgar, mas respeitar as mulheres que, como ela, abdicaram da liberdade e do conhecimento e, reconhecer que depois de tanto debate sobre educação, voto, direitos sexuais e reprodutivos e lugar de mulher na família e na sociedade, tantas destas opressões ainda se fazem presentes.

Quantas de nós deixamos de dizer o que sentimos e pensamos porque a figura masculina se faz mais importante dentro do contexto familiar? Quantas de nós silenciamos violências e ignoramos o machismo estrutural construído em uma figura paterna, vista como “bom marido e bom pai”? Quantas de nós abandonamos empregos, sonhos, faculdade, em torno da figura da boa mãe, cuidadosa? Quantas de nós nos culpabilizamos diariamente?

No fim dessa viagem, finalmente, eu tive a coragem de dizer à minha avó: “está tudo bem não concordar mais com as atitudes dele, ele não está mais aqui para te obrigar a isso.

Dedico este texto à Elisa, que recentemente perdeu sua avó para o Covid-19. Que o amor de neta e avó prevaleça espiritualmente e nos sustente nestes tempos de pandemia, mesmo diante da ausência dos cheiros, abraços e histórias.

Array

Apresentadora e produtora do Olhares Podcast, é também mestranda em Direitos Humanos, pesquisadora e consultora em gênero e diversidade, palestrante e advogada.